sexta-feira, 29 de janeiro de 2010



29 de janeiro de 2010 | N° 16230
DAVID COIMBRA


Formas de crueldade

Dois brasileiros assaltaram um homem, dias atrás, e ele não tinha dinheiro para lhes dar, então eles o manietaram e atearam fogo em suas mãos. Isso ocorreu ainda esta semana, no interior do Estado.

Também no Interior, mais exatamente em Erechim, outros brasileiros pegaram outro homem e, por algum motivo, deceparam-lhe os dois braços e as duas pernas e o deixaram largado em um bueiro. Isso foi na semana passada.

Se lesse em um livro de história que algo desse quilate havia sido cometido na Antiguidade ou na Idade Média, suspiraria pelos tempos de trevas que já foram atravessados pela Humanidade. Mas essas barbaridades foram perpetradas agora, sob as luzes do século 21, bem aqui no Rio Grande do Sul, e os autores desses atos são brasileiros, como a maioria das pessoas que conheço.

Suponho que as vítimas desses brasileiros devam ter sofrido atrozmente, mas nem demos muita importância a elas. Mereceram citações pálidas na imprensa e no dia seguinte já estavam esquecidas. Não sei de ninguém que se comoveu pelo que passaram, ninguém que chorou por sua dor.

Há algo errado conosco.

Uma vez, Noé tomou um porre. Já não estava mais confinado na Arca, a havia deixado encalhada no alto do Monte Ararat, na distante Turquia. Desceu à terra, cultivou-a, plantou a vinha e fermentou o vinho. Exagerou ao experimentar sua própria produção, o venerando patriarca, e aí sabe como é: saiu dizendo para todo mundo te considero pra caramba, fez um strip e desmaiou de bêbado, peladão.

Um de seus filhos, Cam, flagrou a fiasqueira do velho, achou a maior graça e correu para contar a Sem e Jafé, seus irmãos. Sem e Jafé, porém, ficaram com pena de papai, tomaram um manto e com ele cobriram pudicamente Noé, tendo o cuidado de entrar de costas na tenda em que ele roncava, para não vê-lo nu.

Ao acordar, Noé ficou sabendo do comportamento de seus filhos. Enfureceu-se com Cam. Talvez até além da conta, suponho que por causa da ressaca de vinho, que, como se sabe, é a pior das ressacas. Esbravejou:

– Que seu filho seja escravo dos escravos de seus irmãos!

Os hebreus diziam que esse filho de Cam chamava-se Canaã, de quem descenderam os cananeus. Já os árabes dos séculos 8 e 9 garantiam que o neto amaldiçoado de Noé chamava-se Cush, que, em hebreu, quer dizer “preto”. A partir de Cush foi fundada a nação Cuxe, que era a Núbia, mais ou menos onde hoje fica o Sudão.

Essa suposta descendência forneceu aos árabes muçulmanos uma engenhosa justificativa para escravizar os negros africanos durante a Idade Média, já que os árabes, bem como os hebreus, se originaram de Sem, enquanto os indo-europeus vieram de Jafé.

Logo, os negros africanos tinham mesmo de ser escravizados pelos semitas e pelos europeus – de acordo com os semitas e os europeus, claro.

Mas o que interessa agora não é a lógica escravagista, e sim a maldição de Noé. Ele a lançou sobre o filho que o expôs. Noé não tinha feito mal a ninguém, apenas havia bebido demais.

Cam, no entanto, o ridicularizou e deu publicidade à humilhação do pai. Esses que filmam e fotografam com celular e expõem as pessoas na internet, esses não fazem hoje como fez o desgraçado Cam? Não merecem eles também uma maldição?

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