quarta-feira, 20 de janeiro de 2010



20 de janeiro de 2010 | N° 16221
DAVID COIMBRA


Vontade de fazer coisa errada

Queria fazer uma coisa errada. Ser fumante, talvez. Sempre invejei os fumantes. Lembro do meu amigo Cyro Silveira Martins Filho quando ele fumava. O Cyro é um cara bonitão. Já vi mulheres uivarem à passagem do Cyro.

Não pretendiam uivar, mas não conseguiam se conter. Um instinto primevo as fazia erguer o queixo para a lua e emitir um lamento longo e triste. Esse fenômeno ocorria sobretudo nos momentos em que o Cyro fumava. Ele tirava longas baforadas do cigarro e fitava a fumaça azul a evolar-se. Parecia refletir sobre algo muito profundo.

Bacana.

Eu pensava: cara, como eu queria fumar! Mas nunca fumei, nunca tive aquele ar de Humphrey Bogart do Cyro. De que me adiantam pulmões imaculados, de que me adianta um fôlego de Phelps, de que me adianta subir escadas feito um cabrito-montês, se não posso ser Bogart nem por cinco minutos?

Também tinha vontade de comer um xis-pernil com ovo bem na frente de uma vegetariana protetora de animais. Diria para ela:

– Está vendo esses nacos de pernil que estou mastigando? Pertenceram à coxa traseira esquerda de um lindo porquinho cor-de-rosa. Chamava-se Heitor e corria feliz pelos campos, vivia uma vida despreocupada e acalentava doces sonhos suínos, até o dia em que um fazendeiro enfiou uma lâmina de 15 centímetros em sua jugular, sem dó de seus guinchos e pedidos de clemência, esquartejou-o e vendeu-o para um frigorífico, que o vendeu para o supermercado, que o vendeu para mim, que o cozi em fogo brando e agora o estou trinchando e engolindo e estou feliz, feliz, feliz!

Como queria dizer isso para uma vegetariana protetora dos animais!

Ou então olhar para um desses ecologistas e sussurrar em seu ouvido:

– Cara, vou te dizer uma coisa: se tem uma coisa de que gosto nos supermercados é da sacola de plástico. Só vou a supermercado para pegar sacola de plástico. Pego um monte de sacola de plástico, dezenas delas, e as uso lá em casa e gargalho. Gargalho!

E gargalharia feito um Vincent Price.

Verdade que as vegetarianas, as protetoras dos animais, os antitabagistas, os ecologistas e todos os chatolas do planeta reunidos não são culpados diretamente pelo que vi e me deixou com vontade de fazer coisa errada, mas eles representam esse novo mundo irritantemente saudável, que não admite rir de si mesmo.

Neste mundo intolerante acontece o que aconteceu e me deu a tal gana transgressora: dois jogadores marcaram gol, no jogo do Grêmio, foram comemorar com a torcida, pendurando-se no alambrado, e levaram cartão amarelo. Cartão amarelo por festejar com a torcida no alambrado! Por favor!

Vou sair agora mesmo para comprar um Minister sem filtro.

Medo de ser feliz

Vi uma foto do Ronaldinho cobrindo toda a parede de um edifício de uns 30 andares na Alemanha, pouco antes da Copa de 2006. O Ronaldinho gigante sorria para a cidade. Era como um daqueles supercartazes do Stalin nos tempos da velha União Soviética.

Por onde a gente andasse deparava com a imagem do Ronaldinho nos pontos de ônibus, em outdoors, nos comerciais de TV. Ronaldinho, Ronaldinho, os europeus só falavam nele e sorriam ao falar dele, tinham certeza de que ele faria mágicas com a bola durante a Copa, de que seria o novo Pelé.

Ronaldinho podia mesmo ter sido o novo Pelé.

Mas, com a bola rolando, ele se comportou feito um comum. Tocava para o lado, não tentava o drible, não arriscava. Foi assim no primeiro jogo, no segundo, no terceiro. Um dia, consegui uma exclusiva com ele. Conversamos num canto do vestiário, meio escondidos. Perguntei quando ele iria para cima dos adversários, quando ele seria o Ronaldinho que se esperava que fosse. Ele balançou a cabeça:

– Não... O importante é o grupo, é o time todo, não podemos ter estrelas...

Não queria dar a impressão de que era maior do que os outros. Só que ele ERA. Devido a esse surto de humildade, a essa cautela radical, Ronaldinho tornou-se um mortal, quando devia assumir-se como um deus.

No momento em que, finalmente, ele decidiu comportar-se como o astro que devia ser, era tarde demais. Ronaldinho havia perdido o empuxo, e Zidane tomou o lugar reservado para ele no Olimpo.

Agora, tudo indica que Ronaldinho perdeu a vergonha de ser o número 1. Trata-se do único craque verdadeiro do planeta. O único da dimensão de um Rivellino, de um Gérson, de um Tostão, de um Zico. E, sendo assim, é ele e mais 10 na Seleção.

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