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sábado, 30 de janeiro de 2010
30 de janeiro de 2010 | N° 16231
CLÁUDIA LAITANO
Os peregrinos
Uns rezam em direção a Meca, outros para o lado contrário. Alguns percorrem o caminho de Santiago, outros preferem Lourdes ou Aparecida do Norte. Há os que seguem seu time até o sertão do Ceará, e tem aqueles que transformam a própria casa em um lugar sagrado.
Minha peregrinação também era movida por uma espécie de fé – a do tipo que se alimenta não apenas da devoção individual, mas da sensação de pertencer a um grupo, de fazer parte. Mergulhar no senso comum, no gosto médio, e tirar disso, paradoxalmente, um prazer particular. É disso que se tratava.
Às vezes, ser “mais um” é uma experiência única – e qualquer pessoa que já se sentou na arquibancada lotada de um estádio ou sacudiu na avenida atrás de um trio elétrico sabe do que eu estou falando. Não gosto de Carnaval nem de futebol e meu último comício foi o da campanha das Diretas.
Talvez por isso valorize tanto a ideia de ser fã de uma banda que agrada a quase todos os gostos – como pôr do sol e pizza quatro queijos. O destino da minha peregrinação não poderia ser outro: Liverpool, Inglaterra.
Já havia visitado Londres em duas ocasiões, mas nunca com tempo suficiente para enfrentar a viagem de três horas de trem até a cidade sagrada de todos os fãs de Beatles. Tempo, desta vez, não era desculpa.
O maior obstáculo era meu próprio ceticismo com relação ao que me esperava em Liverpool. E se a coisa toda fosse uma imensa roubada turística, daquelas que nos deixam constrangidos e com remorso por todos os tostões gastos em lembrancinhas inúteis? Era um risco considerável – que eu decidi desconsiderar.
Acompanhada de um marido resignado, mas indiferente ao sentido mais profundo que movia a peregrinação, cheguei a Liverpool em meio à pior tempestade de neve dos últimos 30 anos. Ao contrário do que eu imaginava, não encontrei placas de sinalização indicando o caminho até Penny Lane ou sequer um modesto quiosque de informações na estação facilitando a vida do peregrino.
Foi preciso caminhar 15 minutos, sob e sobre a neve, até encontrar algum sinal de beatlemania – uma lojinha simpática, mas modesta. Comprei ali os ingressos para um passeio de ônibus de três horas pelos pontos obrigatórios (a casa onde John Lennon morou, Strawberry Fields, o túmulo da suposta Eleanor Rigby...) que aconteceria à tarde e marchei mais 15 minutos sobre o chão escorregadio até o museu The Beatles Story. A viagem começava a fazer sentido.
O museu, criado há 20 anos, lembra a história da banda com objetos, vídeos e a reconstituição de ambientes como o Cavern Club e os estúdios de Abbey Road.
É bem pensado e completo, mas poderia, em princípio, estar montado em qualquer lugar do mundo. Faltava “aura”. Minha expectativa passou a ser o passeio de ônibus pelos cenários que eu já conhecia de livros e filmes, e que eu veria de perto – mais ou menos – pela janela do ônibus.
Às três da tarde, estávamos todos, peregrinos e seus acompanhantes resignados, mal abrigados da nevasca, esperando nosso Magical Mistery Tour. Mas, pouco antes do horário marcado, soubemos que o passeio havia sido cancelado em função do mau tempo.
Voltei para Londres no mesmo dia, com uma coleção de CDs que eu poderia ter comprado em Porto Alegre e sem ter visto muita coisa de Liverpool além de neve.
É possível que essa tenha sido minha primeira e última visita à cidade – nunca se sabe. Seja como for, a lembrança mais forte que vai ficar dessa viagem às geleiras da memória serão aqueles poucos minutos em que, sob o frio e o mau tempo, um grupo de estranhos unidos por uma paixão comum esperou pacientemente por um ônibus que nunca chegou.
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