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domingo, 10 de janeiro de 2010
DANUZA LEÃO
Episódios cariocas
Tem alguma coisa mais carioca do que um marido que vai para o botequim jogar baralho?
OUTRO DIA fui fazer as unhas num salão onde nunca tinha estado, e a manicure era daquelas bem falantes. No espaço -curto- em que fiquei lá, ela me contou quase sua vida toda. Mora em Caxias, tem um filho e praticamente criou os dois que o marido já tinha, de um primeiro casamento.
Contou histórias e usou uma palavra que há anos eu não ouvia: que enquanto cuidava da lida, o marido, folgado, ficava no botequim com os amigos tomando cerveja e jogando...
baralho. Tem alguma coisa mais carioca do que um marido que vai para o botequim jogar baralho? Se fosse biriba, tranca, bisca, mas não: ela disse BARALHO. Adorei a história.
A mesma manicure, por sinal morena de astral altíssimo, contou do dia em que o marido foi pedir a seus pais para deixá-la ir morar com ele; casar não podia, pois foi antes da lei do divórcio. Muito sério, ele disse que nada faltaria em casa, que ela não precisaria trabalhar e que não se preocupassem, pois ele nunca bateria nela. Aí, meu queixo caiu.
Nunca tinha ouvido falar de um homem que, ao pedir a mão de uma moça, diz a seus pais que fiquem tranquilos porque ele jamais vai bater nela. Se ele diz isso, imagino que o normal seria bater.
Ok que isso deve ter sido antes da Lei Maria da Penha, mas penso que na cabeça de algumas pessoas mais rudes, talvez, bater na mulher seja comum; tão comum que ele quis tranquilizar seus futuros sogros dizendo que nunca faria isso.
Esse é um Brasil que só se conhece quando uma simpática e extrovertida manicure resolve contar sua vida, e ainda confirma: "ele é muito bom, nunca me bateu".
Outro dia eu estava procurando alguma coisa para ver na televisão, não tinha nada. Acabei parando num documentário já começado, em preto e branco, meio gasto pelo tempo. Deduzi que havia sido feito em alguma favela ou bairro da zona norte do Rio, cujos moradores gostavam de samba, claro.
Era Carnaval, iam todos sair sambando, e o sonho era serem promovidos a escola de samba para desfilar na avenida no próximo ano, junto com as importantes. Quem narrava o documentário era o presidente da possível futura escola.
A câmera focalizou uma birosca, que na verdade era um barracão, e num puxado, com chão de terra batida, alguns homens de variadas idades faziam o ritmo e cantavam. Era coisa séria: só tinha homens.
Os closes, bem feitos, foram nas garrafas de cerveja, nas mãos dos sambistas: um batucava na mesa, outro fazia o ritmo numa caixinha de fósforo, outro batia duas varetas de madeira, outro um pequeno pandeiro. Eram homens humildes, todos vestidos muito corretamente, mas percebia-se que as bermudas que usavam um dia haviam sido calças.
Aí apareceu a talvez futura escola na rua, sambando. Todos muito pobres, pobres e animados; a maioria vestida normalmente, e só alguns poucos improvisaram uma fantasia, como um rapaz que vestia short, enormes brincos de argola e um turbante na cabeça.
Mas o que mais me empolgou foi uma "ala" com quatro jovens magrinhos, de perna fina, enrolados em um lençol, como se fosse uma toga; na cabeça, uma coroinha feita de folhas, e nas mãos um assento de privada, à guisa de lira. Um deles levava um cartaz tosco, escrito à mão, onde se lia: "Os tarados de Roma".
No final do documentário, soube-se que o grupo no ano seguinte estava na avenida desfilando com as "grandes", com o nome de Unidos de Vila Isabel. Ah, povo brasileiro; você é muito emocionante.
danuza.leao@uol.com.br
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