quarta-feira, 27 de janeiro de 2010



27 de janeiro de 2010 | N° 16228
DAVID COIMBRA


O nome do homem

Lembro de uma tarde de sol, estava em aula no primeiro, ou talvez segundo, no máximo terceiro ano primário. A professora virou-se de costas para nós e escreveu um nome no quadro negro, na verdade quadro verde. Guardo recordação nítida até do desenho da letra da professora. Ela escreveu o seguinte:

“EMÍLIO GARRASTAZU MÉDICI”.

Depois, voltou-se para nós e disse, o toco do giz entre o polegar e o indicador:

– Este é o nome do nosso presidente!

O orgulho escorria da voz da professora e esparramava-se pelo parquê. Fiquei pensando naquele nome. Emílio Garrastazu Médici. Nosso presidente. Homem importante.

A professora começou, então, a enumerar as façanhas do Brasil regido pelo presidente Médici. As grandes obras. O desenvolvimento frenético. Aquele era um país que ia para frente.

Lembro também do nosso desfile no 7 de setembro daquele ano. Nós, que digo, éramos os alunos. Usávamos tênis Conga. Diziam que Conga dava chulé, não sei se era verdade. Talvez fosse, porque quem tinha um Conga tinha só um Conga, nenhum outro tênis. Tênis era um artigo caro, e também não havia muitas marcas à disposição: o mais barato era o Conga, depois vinha o Bamba e no alto da cadeia alimentar dos tênis reinava o Ki-Chute.

Então, num colégio público como o nosso, que aliás também levava nome de presidente do regime militar, Costa e Silva, hoje chamado mimosamente de “Costinha”, não sei se o sisudo general-ditador aprovaria, então, como ia dizendo, num colégio público como o nosso todo mundo usava Conga, e o mau cheiro, se sobreviesse, era combatido com talco.

Enfim.

Não queria falar dos tênis, mas de outra parte do uniforme, o blusão de mangas compridas no qual se lia no peito, impresso em dourado sobre fundo azul:

“Estudantes do Brasil”.

Bonito aquilo, estudantes do Brasil. Sentíamos estar participando de algo grandioso. O Brasil dava a impressão de ser algo grandioso. Ou prestes a se transformar em algo grandioso.

Não se transformou.

Nada do que sentíamos correspondia à realidade. Todos os agudos males econômicos que afligiram o país nos anos 80 e foram mais ou menos corrigidos pelo Plano Real, todas as profundas misérias morais dos anos 2000, que parecem não ter correção, tudo estava sendo cevado nos anos 70.

A dívida pública fermentava a inflação galopante, assim como a redução dos investimentos na educação e a lógica canalha do funcionamento da ditadura fermentavam a decadência do caráter do brasileiro. Claro, só soubemos disso mais tarde, quando não estávamos mais vivendo a época, olhando de longe, dos píncaros da perspectiva histórica.

É sempre assim, é difícil analisar o tempo em que se vive. Eric Hobsbawn já disse que o historiador não pode nunca escrever sobre sua própria época, sob pena de ser ridicularizado pela posteridade. Verdade que disse isso como uma desculpa por escrever sobre o “Breve Século 20”, o século dele, mas, ainda assim, tinha razão.

Reduzindo ao ambiente do futebol, e reduzindo ainda mais ao ambiente do futebol gaúcho, vê-se que até nesse caso faz falta a perspectiva histórica.

Porque a cada começo de ano festeja-se supostos craques e imaginários supertimes. Bastam meia dúzia de jogos do Brasileirão para que se descubra que uns eram realmente supostos e outros de fato imaginários.

O Gauchão serve para que se identifique o que vai dar errado. Como o Grêmio de agora. Se o Grêmio não se fortalecer rapidamente em movimentação, em marcação, em empenho e em alma, a primeira crise do ano já tem até hora para começar: 21h30min de domingo, logo após o Gre-Nal.

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