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quarta-feira, 3 de outubro de 2007
03 de outubro de 2007
N° 15385 - Paulo Sant'ana
O registro na memória
Eu me queixo de falta de memória, mas suponho que não seja esse o meu problema.
Aliás, é um problema de muita gente. Quando eu era criança, os adultos tomavam dois remédios para falta de memória, eram muito badalados na propaganda de rádio: Iofoscal e Neuro Fosfato Eskai.
Se eu vejo um filme, no dia seguinte não sei mais contá-lo. O mesmo com um livro, se gosto do livro, sinto-me obrigado a lê-lo tantas vezes quantas quero recordar seus ensinamentos: não consigo fixar na memória as passagens mais interessantes do texto.
Então me queixo de falta de memória.
Mas como é que para versos a minha memória é eficientíssima? No que se refere a poemas, sonetos e letras de músicas, se gosto de qualquer poesia, decoro-a imediatamente com facilidade extraordinária. E se gosto muito da poesia ou da letra da música, nunca mais a esqueço.
Eu sei por exemplo de cor mais de 200 marchinhas de Carnaval antigo. Gravei-as na cabeça quando era menino ou adolescente e nunca mais me saíram da memória.
Vez por outra, não sei por que, 50 anos depois, relembro a letra da marchinha, pode me faltar um ou outro verso, cantarolo-a diversas vezes e logo sou sacudido pela letra inteira.
Que falta de memória é esta, se sou detentor de mais de 2 mil letras de músicas, inteiras ou parciais, de mais de 200 marchinhas de Carnaval, de mais de cem sonetos?
Eu devo estar sendo vítima de um equívoco: não é falta de memória o que tenho, é déficit de atenção.
Como me esqueço dos meus óculos e do meu celular cerca de 10 vezes por dia, não quer dizer que não me lembre de onde os deixei. Acho que quer dizer que não registrei na memória, por distração, o lugar em que deixei meus óculos e meu celular.
Naquela vez, por exemplo, em que fiz as compras no Shopping Praia de Belas, desci para apanhar meu carro na garagem, não o encontrei.
Pedi auxílio da segurança do Shopping Praia de Belas. Nada da achar meu carro, levei mais de uma hora nesse impasse.
Pedi auxílio da polícia pública. Mais uma hora, nada de achar meu carro.
Até que fiquei corado de vergonha: lembrei-me de que tinha deixado meu carro no outro shopping, no Iguatemi.
O que me ocorreu não foi falta de memória, foi déficit de atenção. Não me lembrei no Iguatemi de que tinha deixado meu carro lá porque não registrei nos meus porões neuroniais o momento em que deixei o carro lá.
Como não havia registro na minha memória desse fato, não tinha como resgatá-lo. Déficit de atenção.
Não há como pinçar na memória - é o que calculo - algo que a gente não deposita nela por falta de interesse ou de atenção.
Só agora percebo que a memória funciona exatamente igual a esse computador em que escrevo neste momento: se eu não "salvar" o texto, ele desaparecerá.
Se eu não registrar na memória a trama do filme que vi, o lugar em que deixei os óculos e o celular, se esses acontecimentos me apanharem distraído e eu não os enviar para os escaninhos cerebrais, nunca mais vou dar com eles.
Aí eu digo erradamente que não tenho memória.
Quando na verdade eu não acionei minha memória, atitude que compreende dois tempos: um é o da busca, mas sem resultado nenhum se não tiver o outro, o do registro. Não tenho, portanto, falta de memória. Eu sou é distraído.
E felizmente sou distraído. Porque não existe maior tormento e desperdício do que registrar tudo na memória.
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