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Desmemória
"Vergangenheitsbewältigung" é uma daquelas palavras que não se solta casualmente em uma conversa sem correr o risco de cobrir o interlocutor de espanto e perdigotos. Duden, o Aurélio alemão, dá a seguinte definição para o termo - cunhado, não por acaso, em 1945: "Debate público realizado dentro de um país sobre um período problemático de sua história recente. Na Alemanha, em especial sobre o nacional-socialismo".
Foram os alemães que inventaram a palavra, mas outros países teriam motivos de sobra no armário para pegar emprestado o espírito da coisa, se quisessem ou tivessem liberdade para tanto: sul-africanos fazendo um mea-culpa sobre o apartheid, russos expondo os massacres do stalinismo, norte-americanos reparando os danos da segregação racial, brasileiros trazendo à tona os crimes cometidos pelos militares durante a ditadura.
Escrevo sem saber os resultados das eleições alemãs de domingo, mas o rápido crescimento do partido populista de extrema direita Alternativa para a Alemanha, principalmente entre homens jovens, mostra que não há "Vergangenheitsbewältigung" que sempre dure, nem vergonha que nunca acabe. De todos os países em que a extrema direita avançou nos últimos anos, nenhum construiu tantos anteparos legais contra a banalização dos erros do passado e a distorção da história. Parecia impossível que a Alemanha - justo a Alemanha - fosse escorregar nessa casca de banana.
Na contramão da desmemória coletiva que transforma a história em uma espécie de parque temático decorado conforme as preferências do freguês, o passado tem se tornado uma das matérias-primas mais valorizadas da literatura contemporânea. O interesse por diários, relatos biográficos e sociobiográficos, histórias de família (como Ainda Estou Aqui, de Marcelo Rubens Paiva) e autoficção não é novo, mas a chamada "escrita de si" talvez tenha chegado ainda mais perto de ser vista como tendência dominante depois que a memorialista Annie Ernaux ganhou um Nobel, em 2022.
Como se uma das respostas da arte para as tentativas cada vez mais frequentes de varrer o "Vergangenheitsbewältigung" para baixo do tapete esteja vindo na forma de um imenso quebra-cabeças de relatos que reavivam e reafirmam a potência da memória. _
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