sábado, 15 de fevereiro de 2025



15 de Fevereiro de 2025
COM A PALAVRA - Com a Palavra - Isabella Sander

Neurofisiologista francês de 59 anos pesquisa sobre o impacto dos dispositivos eletrônicos no cérebro de crianças e adolescentese os benefícios da leitura no desenvolvimento cognitivo

"O tempo de tela está destruindo o cérebro das crianças"

Escritor e pesquisador, Michel Desmurget busca mostrar, de um lado, os riscos do consumo de aparelhos como celulares e tablets para um cérebro em desenvolvimento e, de outro, os benefícios do hábito da leitura como forma de estimular a cognição e a inteligência emocional.

Por que você decidiu estudar o impacto do uso de telas nas crianças?

Este é um problema de saúde pública. Como neurofisiologista, sei que o desenvolvimento do cérebro depende de como ele é "alimentado". Fiquei furioso ao perceber a enorme lacuna entre o que a literatura científica dizia sobre o impacto das telas e as informações imprecisas difundidas na mídia. Há alguns anos, videogames violentos eram exaltados, e redes sociais eram vistas como benéficas para o aprendizado. A discrepância era absurda. Não sabemos tudo, mas sabemos bastante, e o que estava sendo propagado não correspondia às evidências científicas. Felizmente, as pessoas estão mais conscientes, pois os efeitos começaram a ficar visíveis.

Quais os desafios ao educar crianças em uma sociedade cujo uso da inteligência artificial é crescente?

O problema das telas segue a mesma lógica. Quando damos um tablet a uma criança ou adolescente, esperamos que seja usado para algo produtivo, como leitura ou aprendizado. Mas todos os estudos mostram que isso raramente acontece. Em vez disso, passam horas assistindo a vídeos no TikTok, Netflix ou jogando games violentos. Isso é natural, pois essas plataformas foram projetadas para estimular o sistema de recompensa de forma irresistível. Um livro nunca competirá com a Netflix nesse aspecto. Com a inteligência artificial, ocorre o mesmo. 

Ela pode ser uma excelente ferramenta para ajudar a resolver problemas, mas, na prática, crianças e adolescentes a utilizam para que faça o trabalho por eles. Isso gera dois problemas: primeiro, a IA pode errar; segundo, mesmo quando acerta, o estudante não aprende nada. Se não treinamos o cérebro, ele não evolui. O risco é que, coletivamente, fiquemos cada vez mais dependentes da IA, enquanto ela se torna mais inteligente. O importante não é que o ChatGPT resolva um problema de matemática, mas que os estudantes compreendam o processo. A menos que queiramos uma sociedade onde sejamos o mais burros possível, sem entender nada e apenas perguntando ao ChatGPT para fazer tudo por nós - e não acho que essa seja uma boa perspectiva.

O Brasil aprovou lei proibindo o uso de celulares nas escolas, inclusive no recreio. Proibir é uma boa ideia?

Há estudos mostrando que adolescentes, mesmo sem receber nenhuma notificação ou som, olham para o celular de 200 a 300 vezes por dia. É o que os americanos chamam de Fomo (medo de ficar de fora). Apenas o fato de o celular estar na mesa, desligado, reduz sua capacidade de entender e memorizar uma aula. Se você está na universidade e há alguém ao seu lado usando o celular, seu cérebro pensa: "Essa pessoa pode ter uma informação que eu não tenho." Isso atrapalha sua concentração. Mesmo que você tente focar, seu cérebro diz: "Ei, você pode estar perdendo algo." Além disso, há essa ideia de que as novas gerações conseguem fazer várias coisas ao mesmo tempo. Isso é um mito.

Por quê?

O cérebro só pode fazer uma coisa por vez. Se um aluno usa o celular durante a aula, é um desastre. Não há um único estudo que demonstre um efeito positivo do uso do celular em aula. No máximo, alguns mostram que não há efeito nenhum, mas a maioria aponta prejuízos. Sobre a proibição, o cérebro jovem é muito mais sensível a esse tipo de estímulo. Para os jovens, a exposição excessiva pode causar disfunções no sistema de recompensa, o que está ligado à aprendizagem e a vários tipos de vícios. É como o álcool. Todos aceitam que há uma idade mínima para beber, porque sabemos que o impacto no cérebro jovem é mais prejudicial do que no cérebro adulto. Com as telas, acontece o mesmo. Por que não tomar medidas para proteger os jovens?

Por que a leitura é melhor para uma criança do que, por exemplo, assistir a um bom filme ou usar outras ferramentas pedagógicas digitais?

Ninguém discute que alguns filmes são obras de arte, mas não é a mesma coisa assistir a um filme de vez em quando e se afundar em vídeos, séries da Netflix e outras coisas estúpidas. Estudos compararam crianças que leem bastante e assistem pouca televisão ou filmes com crianças que assistem muitos filmes e séries e leem menos. Há uma grande diferença nos resultados escolares, no vocabulário e no conhecimento geral. Mesmo considerando um documentário educativo, há dois fatores principais que explicam a superioridade dos livros.

Quais são eles?

O primeiro é a riqueza da linguagem. Estudos mostram que até os livros infantis contêm mais vocabulário e estruturas gramaticais mais complexas do que qualquer conversa oral. O segundo é a profundidade do processamento cognitivo. A leitura permite um nível mais profundo de compreensão porque você pode voltar ao texto, reler, desacelerar quando necessário. O cérebro processa a informação de maneira mais detalhada.

Um estudo mostrou que, pela primeira vez, os não leitores são maioria no Brasil. Como reverter essa situação?

Isso está acontecendo em todo o mundo. A leitura e o aprendizado da leitura exigem esforço, mas o primeiro passo não deve ser impor uma obrigação. Sabemos que ler é útil para a vida da criança, mas dizer a ela "se você ler bastante, terá boas notas e um bom emprego" é inútil. A única maneira de desenvolver a leitura é através do prazer. Sem prazer, não há leitores.

Até quando manter a rotina de ler junto com a criança?

Não pare até o final do Ensino Fundamental. Nesse período, é importante dar à criança alguns livros que sejam muito fáceis e alguns muito difíceis. Se todos forem difíceis, ela não entenderá nada e será frustrante e inútil. Se for fácil demais, ainda haverá algumas palavras que a criança não conhece, e ela poderá entender pelo contexto e apreciar a história. Mas, se você continuar lendo com ela, poderá trazer algumas coisas mais difíceis que ela não conseguiria ler sozinha. É bom ter alguns rituais. 

Então, todos paramos e sentamos no sofá para ler. Para colher os impactos positivos da leitura, você não precisa ler cinco horas por dia. Algo entre 20 e 30 minutos por dia tem um impacto enorme a longo prazo. O pior que se pode fazer é dizer "você vai ler por 15 minutos e depois pode ver Netflix ou jogar videogame", porque isso transforma a leitura em uma punição. E o tempo de tela está destruindo o cérebro das crianças. 

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