sábado, 15 de fevereiro de 2025


15 de Fevereiro de 2025
J.J. CAMARGO

Não se queixe do que vai piorar

A multiplicação das faculdades de Medicina não é a solução para a caótica realidade da saúde pública brasileira.

Auxiliadas por uma tecnologia cada vez mais aprimorada, as escolas passaram a oferecer uma medicina que só não era a dos sonhos porque os braços longos da tecnologia aumentaram a distância do paciente, tornando-a progressivamente desumanizada, exigindo correções de rumo para que o paciente retomasse a sua posição de figura central em todo processo.

Por evidente necessidade, programas de humanidades na saúde enriqueceram os currículos das melhores escolas, identificadas pela insistência com que passavam a considerar que o paciente e a sua doença eram figuras indissociáveis. E quem as tratasse como se fossem independentes implicaria em um de dois rótulos que ninguém festejaria: incompetente ou charlatão.

Durante algum tempo, as maiores premências da formação médica estavam relacionadas com a necessidade de residência médica como um reforço da experiência prática pós-graduação, exacerbada pela aceleração do conhecimento médico nas últimas décadas. Nos grandes hospitais, a rotina se repetia: próximo da graduação, o doutorando oriundo de escolas menores trazia no olho a angústia pela obtenção de uma vaga em residências ou estágios, consciente de que a exposição ao paciente, na sua escola de origem, tinha sido insuficiente. E a angústia era procedente, afinal, as vagas para residência não contemplavam mais que metade da necessidade.

O que não tínhamos ideia era do quanto se podia piorar o que já estava mal: a multiplicação das escolas médicas produzindo milhares de incautos formandos, procedentes de centros menores, incapazes de resolver sequer seus casos de média complexidade; e, por consequência, arremedos de escolas, mantidas por professores improvisados, com a missão inglória de habilitar jovens ingênuos com a responsabilidade de, veja só, cuidar da vida de pessoas de boa-fé, treinadas em acreditar.

Certamente dessa vilania estarão livres os hipócritas que sustentam que a produção de médicos a granel é a solução para a caótica realidade da saúde pública brasileira. Trata-se de uma tentativa frustrada de esconder a cumplicidade, visto que o real interesse é alimentar a milionária indústria criada para produzir diplomas médicos, sem nenhuma preocupação com a saúde da população mais pobre, e a ingenuidade de pais iludidos com a fantasia de que um canudo desqualificado possa abrir as portas da felicidade para seus filhos.

Explorar a compreensível obstinação de oferecer às nossas crias a senha do sucesso, mesmo que às custas de uma descarada extorsão familiar, talvez seja o crime mais hediondo, porque abusa da inocência para destruir um sonho. _

O real interesse é alimentar a milionária indústria criada para produzir diplomas médicos

J.J. CAMARGO

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