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Como sobrevivemos?
Não sei como a minha geração sobreviveu. Usávamos um papel higiênico rosa, feito com restos reciclados de papelão. Uma lixa seria mais delicada. O traseiro ardia. Se você encontrasse o rolo rosa, ainda tinha que comemorar. Porque havia um pior, o verde. O verde Hulk. Explodia com tudo. Nem Hipoglós acalmava seus efeitos e queimadura.
Não existia nenhuma esperança de cuidado, nenhuma promessa de asseio. Gente rica recorria ao bidê.
O grosso da população penava. E pensar que hoje as folhas são duplas, macias, brancas, uma nuvem de tranquilidade perto das borrascas de minha infância. Temos disponíveis, inclusive, lenços umedecidos para peles mais frágeis.
Eu testemunhei a transformação abrupta e gigantesca da nossa higiene. Antes, o banheiro ficava isolado da casa. Acordar de madrugada se mostrava inviável, por isso se mantinham penicos debaixo da cama.
Depois, o banheiro ingressou na residência, e surgiu o chuveiro elétrico. Sem nada ao redor para diferenciá-lo da pia ou da privada. O aposento, nu, compacto, não possuía divisórias, com um solitário ralo no chão. Limpávamos a molhaceira com rodo. Ou seja, o banho não fazia sentido porque logo estávamos suados.
Em seguida, apareceu a cortina de plástico. De preferência, floreada. Você, encharcado, terminava preso. Ela grudava no corpo. Já ouvi relatos de vítimas ensaboadas se enrolando como múmia na cortina, levando o mastro junto e escorregando no piso. Na sequência, veio o box, com a separação das atividades do sanitário. Como conhecemos atualmente.
Não sofremos mais com os choques da torneira. Ou com aqueles pingos gelados no meio da ducha. Ou com a queda da energia de repente. Banho significava sufoco. Não podia ser demorado. Você rezava para não enfrentar infortúnios.
Como só reinava um banheiro por residência tradicionalmente, você precisava se apurar para impedir que um familiar espancasse a porta para entrar. Recordo que, muitas vezes na meninice, eu me lavei com bacia. A mãe fervia água na cozinha e me alcançava baldes, num vaivém tumultuado, num trânsito incessante pelos corredores, para me socorrer pelado no banheiro, tremendo de frio.
Derramava em mim o volume de duas ou três bacias cheias. Estava de bom tamanho e eu não reclamava. Também havia algo que as novas gerações jamais vão entender. Uma caneca de álcool que acendíamos no banheiro para suportar o inverno rigoroso. Uma fogueira perto dos tapetinhos, no canto da área.
Foi sorte grande a residência não pegar fogo, num ato absolutamente temerário com o ambiente fechado. Escapamos de incêndios diariamente, durante os meses gélidos. A caneca, escurecida como carvão, ardia e inspirava um pálido clarão e uma fugaz sensação de conforto.
Os anjos da guarda trabalharam em dobro para nos proteger naquela velha, irrepetível e nem um pouco saudosa época.
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