07
de abril de 2013 | N° 17395
O
CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA
John Travolta e
considerações
Outro
dia ocorreu algo até então inédito para mim: acordei triste. É que, talvez
devido ao, digamos, período vulnerável que atravesso, tenho tido sonhos que não
são sonhos; são lembranças. Algum psicanalista vai ter que me explicar isso.
Por
exemplo:
Numa
noite desta semana, vivi de novo, como se de novo acontecesse, a época em que
era guri, quando eu e meus amigos resolvemos montar um time de futebol de
salão, um jogo que já não existe mais.
Aliás,
sobre o velho jogo de futebol de salão, preciso fazer uma consideração. Ei-la:
Consideração:
O
futebol de salão era totalmente diferente do seu sucedâneo, o futsal, não
apenas nas regras, mas na bola do jogo. Aquela era uma bola pesada e pequena,
que quase não quicava, afeita aos que jogavam como homens, não essas bailarinas
de hoje em dia.
A
bola do futebol de salão era tão pesada, que podia ser temerária. Soube-o bem o
goleiro Languiça. Uma vez, já contei isso faz tempo, o Languiça defendeu
sentado e de pernas abertas uma bola chutada rente ao piso com muita violência.
O
problema é que, antes de lhe chegar às mãos, a bola explodiu em sua bolsa
escrotal num som de tomate esmagado: PLOFT! Então, deu-se a cena de filme de
terror: as partes pudendas do Languiça começaram a inchar de imediato, como se
tivessem vida própria. Ele desabou, urrando de dor, enquanto aquela massa rósea
lhe saía pela perna do calção preto, crescente e assustadora. Parecia a Bolha
Assassina do filme. Achamos que o saco do Languiça ia estourar. Não estourou,
para sorte de seus descendentes.
O
Cometa
Agora
voltando ao nosso time de futebol de salão. Os fundadores éramos eu, o Jorge
Barnabé, o Amilton Cavalo, o Plisnou, o Sérgio Anão e o Diana. Bem. Para
começar, precisávamos de fardamento. Como nossa verba era limitada, pegamos
algumas camisetas brancas velhas, compramos um saquinho de anil no Febernatti e
a minha mãe foi para o tanque vulgar a fim de tingi-las de azul-marinho.
Com
calção branco e meia branca, pronto: uma belezura de uniforme, parecido com o
Cruzeiro quente. Chamamos nosso time de Cometa FC. Não sei por que escolhemos
esse nome, não é um bom nome, mas decidimos em votação. As imperfeições da
democracia...
De
qualquer forma, o Cometa teve a sua carreira, até que, anos depois, decidimos
jogar um campeonato na cancha de cimento e areia da Amovi, a associação dos
moradores do IAPI. Era um campeonato importante, do qual iam participar os melhores
times do bairro. E, na nossa chave, caíram os dois melhores entre os melhores:
o América e o time do Jairo, não lembro o nome do time do Jairo, mas preciso
fazer uma consideração sobre ele. Aí vai:
Outra
consideração:
O
Jairo era respeitado por ter o chute mais poderoso da região compreendida entre
os altos da Plínio e a Assis Brasil profunda. Era um chute seco, reto, uma bala
de bazuca. Ele batia de canhota, que nem O Melhor de Todos, Roberto Rivellino.
Se o Jairo fosse para o Grêmio ou para o Inter, pegaria a 10 fácil, fácil. Foi
o chute do Jairo que abalroou as partes delicadas do Languiça, que horror.
Pois
o time do Jairo era um dos nossos adversários, além do temível América. Ocorre
que aquele era o tempo dos Embalos de Sábado à Noite, o filme, acerca do qual
tenho de tecer nova consideração.
Terceira
consideração:
Todos
nós queríamos ser John Travolta, naquele tempo. Ele dançava e enlouquecia as
mulheres. Numa cena do filme, a menina, macia e sorridente, se aproxima da mesa
em que ele está bebendo com os amigos, debruça-se e mia:
–
Você é tão bom na cama quanto na pista? Ele dá de ombros e vai dançar com ela.
Depois de alguns movimentos, afasta-a dizendo: – Espero que você não seja tão
ruim na cama quanto na pista.
E
vai rebolar sozinho, para gáudio dos frequentadores do que na época se chamava
“discoteque”, que é um nome tão ruim quanto Cometa.
Esse
filme, Embalos de Sábado à Noite, nos fazia crer que a vida ia acontecer num
fim de semana e que as meninas uivariam para a Lua se dançássemos com os
polegares para cima. Nessa, alguns se deram bem, como o meu amigo Plisnou,
pequeno em tamanho mas grande em elasticidade. Eu, no entanto, bem que poderia
ouvir:
–
Você é tão ruim na cama quanto na pista?
Felizmente,
não havia meninas tão espirituosas no Gondoleiros, onde passávamos as
madrugadas de sábado e onde passamos, exatamente, a madrugada da véspera do
campeonato na Amovi.
Sêneca
sabia
Como
diria Sêneca, nós “exaurimos o corpo e degradamos a alma, sem satisfazer a
nenhum dos dois”. Voltamos para casa já de manhã, tomamos banho, vestimos a
camiseta azul do Cometa e fomos, indormidos e amassados, para a Amovi. Lá nos
esperavam o Jairo e sua canhota de ferro, lá nos esperavam os craques do
América. Levamos duas goleadas de 10 a 0, o Sérgio Anão fez um gol contra,
saímos da cancha de areia e cimento sofrendo de ressaca e humilhação.
Foi
o fim do Cometa.
Foi
essa história que me voltou num sonho e que até me fez acordar um pouco triste,
mas, depois, no decorrer do dia, acabou me alegrando. Porque, ora, que bom que
houve Embalos de Sábado à Noite e goleadas de domingo de manhã na minha vida.
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