sábado, 6 de abril de 2013



07 de abril de 2013 | N° 17395
O CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA

John Travolta e considerações

Outro dia ocorreu algo até então inédito para mim: acordei triste. É que, talvez devido ao, digamos, período vulnerável que atravesso, tenho tido sonhos que não são sonhos; são lembranças. Algum psicanalista vai ter que me explicar isso.

Por exemplo:

Numa noite desta semana, vivi de novo, como se de novo acontecesse, a época em que era guri, quando eu e meus amigos resolvemos montar um time de futebol de salão, um jogo que já não existe mais.

Aliás, sobre o velho jogo de futebol de salão, preciso fazer uma consideração. Ei-la:

Consideração:

O futebol de salão era totalmente diferente do seu sucedâneo, o futsal, não apenas nas regras, mas na bola do jogo. Aquela era uma bola pesada e pequena, que quase não quicava, afeita aos que jogavam como homens, não essas bailarinas de hoje em dia.

A bola do futebol de salão era tão pesada, que podia ser temerária. Soube-o bem o goleiro Languiça. Uma vez, já contei isso faz tempo, o Languiça defendeu sentado e de pernas abertas uma bola chutada rente ao piso com muita violência.

O problema é que, antes de lhe chegar às mãos, a bola explodiu em sua bolsa escrotal num som de tomate esmagado: PLOFT! Então, deu-se a cena de filme de terror: as partes pudendas do Languiça começaram a inchar de imediato, como se tivessem vida própria. Ele desabou, urrando de dor, enquanto aquela massa rósea lhe saía pela perna do calção preto, crescente e assustadora. Parecia a Bolha Assassina do filme. Achamos que o saco do Languiça ia estourar. Não estourou, para sorte de seus descendentes.

O Cometa

Agora voltando ao nosso time de futebol de salão. Os fundadores éramos eu, o Jorge Barnabé, o Amilton Cavalo, o Plisnou, o Sérgio Anão e o Diana. Bem. Para começar, precisávamos de fardamento. Como nossa verba era limitada, pegamos algumas camisetas brancas velhas, compramos um saquinho de anil no Febernatti e a minha mãe foi para o tanque vulgar a fim de tingi-las de azul-marinho.

Com calção branco e meia branca, pronto: uma belezura de uniforme, parecido com o Cruzeiro quente. Chamamos nosso time de Cometa FC. Não sei por que escolhemos esse nome, não é um bom nome, mas decidimos em votação. As imperfeições da democracia...

De qualquer forma, o Cometa teve a sua carreira, até que, anos depois, decidimos jogar um campeonato na cancha de cimento e areia da Amovi, a associação dos moradores do IAPI. Era um campeonato importante, do qual iam participar os melhores times do bairro. E, na nossa chave, caíram os dois melhores entre os melhores: o América e o time do Jairo, não lembro o nome do time do Jairo, mas preciso fazer uma consideração sobre ele. Aí vai:

Outra consideração:

O Jairo era respeitado por ter o chute mais poderoso da região compreendida entre os altos da Plínio e a Assis Brasil profunda. Era um chute seco, reto, uma bala de bazuca. Ele batia de canhota, que nem O Melhor de Todos, Roberto Rivellino. Se o Jairo fosse para o Grêmio ou para o Inter, pegaria a 10 fácil, fácil. Foi o chute do Jairo que abalroou as partes delicadas do Languiça, que horror.

Pois o time do Jairo era um dos nossos adversários, além do temível América. Ocorre que aquele era o tempo dos Embalos de Sábado à Noite, o filme, acerca do qual tenho de tecer nova consideração.

Terceira consideração:

Todos nós queríamos ser John Travolta, naquele tempo. Ele dançava e enlouquecia as mulheres. Numa cena do filme, a menina, macia e sorridente, se aproxima da mesa em que ele está bebendo com os amigos, debruça-se e mia:

– Você é tão bom na cama quanto na pista? Ele dá de ombros e vai dançar com ela. Depois de alguns movimentos, afasta-a dizendo: – Espero que você não seja tão ruim na cama quanto na pista.

E vai rebolar sozinho, para gáudio dos frequentadores do que na época se chamava “discoteque”, que é um nome tão ruim quanto Cometa.

Esse filme, Embalos de Sábado à Noite, nos fazia crer que a vida ia acontecer num fim de semana e que as meninas uivariam para a Lua se dançássemos com os polegares para cima. Nessa, alguns se deram bem, como o meu amigo Plisnou, pequeno em tamanho mas grande em elasticidade. Eu, no entanto, bem que poderia ouvir:

– Você é tão ruim na cama quanto na pista?

Felizmente, não havia meninas tão espirituosas no Gondoleiros, onde passávamos as madrugadas de sábado e onde passamos, exatamente, a madrugada da véspera do campeonato na Amovi.

Sêneca sabia

Como diria Sêneca, nós “exaurimos o corpo e degradamos a alma, sem satisfazer a nenhum dos dois”. Voltamos para casa já de manhã, tomamos banho, vestimos a camiseta azul do Cometa e fomos, indormidos e amassados, para a Amovi. Lá nos esperavam o Jairo e sua canhota de ferro, lá nos esperavam os craques do América. Levamos duas goleadas de 10 a 0, o Sérgio Anão fez um gol contra, saímos da cancha de areia e cimento sofrendo de ressaca e humilhação.

Foi o fim do Cometa.

Foi essa história que me voltou num sonho e que até me fez acordar um pouco triste, mas, depois, no decorrer do dia, acabou me alegrando. Porque, ora, que bom que houve Embalos de Sábado à Noite e goleadas de domingo de manhã na minha vida.

Nenhum comentário: