FERREIRA
GULLAR
Tentativa de compreensão
Esse
revolucionarismo retardado, na maioria dos países, foi uma fantasia passageira
Talvez
que, para melhor entender o atual neopopulismo que chegou ao governo de alguns
países latino-americanos, convenha lembrar o que ocorreu antes, logo após a
Revolução Cubana, de 1959.
A
tomada do poder pelos guerrilheiros de Fidel Castro levou alguns setores da
esquerda latino-americana a embarcar na aventura da luta armada, de desastrosas
consequências. Os Estados Unidos, que haviam aprendido a lição cubana, trataram
de induzir os militares da região a substituir governos eleitos por ditaduras militares.
Nesse
quadro, a exceção foi a chegada ao poder, pelo voto, de um partido de esquerda,
elegendo Salvador Allende, no Chile, com o apoio da Democracia Cristã, que dele
se afastou quando o viu refém da extrema esquerda.
O
resultado disso foi o que se conhece: Allende foi deposto e morto, dando lugar à
ditadura de Augusto Pinochet. Todos os movimentos guerrilheiros foram
sistematicamente dizimados nos diversos países onde surgiram, e com eles a
esquerda moderada.
As
ditaduras militares, durante décadas, lançando mão da tortura e eliminação física
dos adversários, tornaram inviável a vida democrática nesses países. Mas se
desgastaram e tiveram que, finalmente, devolver o poder aos civis.
Em
cada país isso ocorreu em momentos diversos e com características próprias. No
Brasil, por exemplo, essa passagem se fez mediante um acordo que resultou em
anistia geral e irrestrita, o que, sem dúvida, facilitou a reimplantação do
regime democrático.
Não
obstante, aqui como noutros países, esse retorno à democracia não significou o
abandono, por todos, dos propósitos revolucionários.
Em
alguns deles, os antigos guerrilheiros se reorganizaram em partidos que, implícita
ou explicitamente, ainda que disputando eleições, visavam a implantação do
regime socialista a que, antes, tentaram alcançar pelas armas.
Esse
é um fenômeno curioso, especialmente porque se manteve mesmo após a derrocada
do sistema socialista mundial e quando, com o fim da União Soviética, o regime
cubano entrou em visível decadência e passou a fazer concessões ao capital
norte-americano, que, então, voltou a explorar a hotelaria e o turismo, o que,
para os revolucionários de 59, havia transformado Cuba num prostíbulo.
Mas
esse revolucionarismo retardado, na maioria dos países, foi uma fantasia
passageira, uma vez que, na disputa eleitoral, ficou provado que a maioria da
opinião pública rejeitava as palavras de ordem radicais.
No
Brasil, após várias derrotas, Lula exigiu que o PT abrisse mão do radicalismo,
ou ele não se candidataria mais. Sem outra alternativa, o partido o atendeu e
publicou uma Carta ao Povo Brasileiro, em que abria mão do revolucionarismo de
palavra e, graças a isso, conseguiu ganhar as eleições de 2002.
Mas
não parou aí, pois, para governar, Lula teve que aliar-se até com os evangélicos,
numa total negação de seus princípios ideológicos. Claro que, para aparentar
fidelidade a suas origens e satisfazer discordâncias internas, estatizou tudo o
que pode, enquanto usava o dinheiro público, por meio do BNDES, para financiar
grandes empresas privadas.
Esse
é o dilema dos neopopulistas latino-americanos: usam discurso de esquerda e
governam fazendo acordos e concessões que sempre condenaram. No discurso de
Hugo Chávez, por exemplo, os Estados Unidos apareciam como o capeta, mas é para
eles que a Venezuela vende quase todo o seu petróleo.
Sei
que é impossível fazer política sem fazer concessões. Não é isso que critico,
portanto. O que pretendo mostrar é como a esquerda, que se dizia radicalmente
comprometida com os princípios anticapitalistas, ao perceber a inviabilidade de
seu projeto ideológico, converteu-se, na prática, em seu contrário, mantendo, não
obstante, o mesmo discurso de antes.
O
mais patético exemplo disso é mesmo o chavismo, que, agora sem o Chávez, deve
tomar um rumo imprevisível.
É certo,
também, que o neopopulismo, valendo-se do assistencialismo e do discurso
esquerdista, inviabilizou a esquerda moderada, que ficou sem discurso. O Brasil
é exemplo disso. Lula se apropriou dos programas sociais e econômicos do
governo anterior, contra os quais lutara ferozmente, e ainda os qualificou de
herança maldita.