21 de maio de 2016 | N° 18531
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO
TRISTEZA NÃO TEM FIM...
As circunstâncias da vida, que os pacíficos atribuem ao destino, podem fazer com que um indivíduo, crescido na miséria extrema, perca gradualmente o alento para a indignação e passe a aceitar os atropelos da vida com uma naturalidade inconcebível e chocante.
Isso que JG de Araujo Jorge reconheceu como o drama das pessoas que “de tanto perder, quando chega o dia da morte, já nem tem mais o que morrer”.
Semana passada, convivi com um paciente que é o símbolo da nossa pobreza social: uma vítima de silicose, essa doença mutilante que escancara o desapreço com que as questões elementares de respeito ao ser humano são tratadas no nosso interior. Essa enfermidade, evolutiva e fatal, destrói os pulmões pela inalação repetida de pó de pedra, e mutila milhares de infelizes trabalhadores braçais, que buscam a sobrevivência cavando nas minas de carvão, de pedras preciosas ou simplesmente perfurando poços artesianos, sem nenhum tipo adequado de proteção.
Ouvindo-o relatar a sua história de perda sucessiva dos irmãos com a mesma doença, facilmente evitável pelo simples uso de uma máscara efetiva, o que mais chamava atenção era o conformismo com que ele descrevia a aceitação dos riscos, condicionado que estava a aceitar a miséria sem protesto e o destino sem redenção. A construção de uma vida indigna era mera consequência de gerações de ancestrais vitimadas pela pobreza genética que molda comportamentos pusilânimes, e sepulta os sonhos mais primitivos.
Não por acaso, a preservação da capacidade de indignação é considerada um dos mais confiáveis índices de desenvolvimento social.
Ao vê-lo ofegante, com os olhos sem brilho porque há muito perdera a esperança, não consegui dizer-lhe que o transplante pretendido, e pelo qual foi encaminhado do Ceará, é uma utopia, porque se for alcançado, ainda tenderá ao fracasso pelas más condições de habitação, higiene e saneamento em que vive.
Há alguns anos, numa situação semelhante em que atendia um nordestino jovem, também vítima de silicose e que também já perdera três irmãos da mesma doença profissional, estupidamente lhe perguntei se não pensara em fazer outra coisa, considerando o que ocorrera com seus irmãos, e ele me impôs o castigo que mereci ouvir pela alienação: “O problema, doutor, é que no sertão nós somos muitas vezes obrigados a escolher entre a fome e a falta de ar. E acabamos escolhendo a falta de ar, porque a fome mata mais rápido!”.
Deprimente dar razão aos estrangeiros que, ao assistirem ao meu relato em Zurique sobre a experiência brasileira em transplantes pulmonares por silicose, se confessaram pasmos com um país que não consegue oferecer o cuidado elementar da prevenção, mas depois que os pulmões estão destruídos, dá a impressão de que se preocupa com eles ao oferecer-lhes um tratamento da complexidade e do custo de um transplante. Que estranho país esse!
Foi doloroso pensar naquele brasileirinho arfante que, como um zumbi, se arrasta pelas ruas por culpa de um sistema miserável, que não tem o mínimo apreço pelos seus cidadãos, mas que se perpetua pela nossa indiferença e permanente omissão. Difícil pensar no metrô da Venezuela e no porto de Cuba sem sentimento de culpa!
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