sexta-feira, 6 de maio de 2016


06 de maio de 2016 | N° 18518 
MÁRIO CORSO

Bagé, muito tempo atrás


Julho de 85, estava em uma comemoração da família da minha mulher em Buenos Aires. Um senhor de idade soube que eu era brasileiro e puxou conversa. Havia um sabor raro em seu português fora de moda. Ele morara alguns anos no Brasil e me desfilava palavras extintas, gírias esquecidas, sobre uma Bagé que tampouco então existia. Sons e paisagens antigos, aliados a um português alheio a todos, nos fizeram uma ilha no recinto.

Éramos, cada um a seu modo, ímpares. Eu era o único não judeu, ele o único não parente. A idade não fazia obstáculo, algo dele percebeu minha nostalgia congênita, sempre pronta para o passado. A conversa girava sobre os anos 30 e seus dias dourados no Brasil. Até detalhes do campeonato gaúcho de 38, vencido pelo Guarany, escutei. A memória reconstruía o período áureo daquela faixa de terra que está no Brasil, mas pertence a um outro território, onde o centro gravitacional platino mostra sua força.

Mas o verão das lembranças de inopino tornou-se minuano. Sem querer, tocamos em uma farpa do passado ainda aguda. Um conterrâneo e amigo suicidara-se. Tantos anos depois, contava o trágico fim de Emanuel Zunz como se tivesse ocorrido ontem. Aquela história provavelmente já fora contada mil vezes, mas é daquelas que a repetição não gasta o gume. Suicídios são como um buraco negro que traga as representações. Os afetados nunca se recuperam de todo. Passam e repassam seus passos tentando saber o que tornaria o destino diferente.

Seu amigo portenho fugia de um litígio que lhe custou tudo. Injustamente acusado de um desvio financeiro, fora preso e perdera seus bens. Sua mulher não resistiu à tormenta e estava longe de sua única filha, que ficara em Buenos Aires. A humilhação da prisão, a infâmia e a derrocada financeira quebraram-lhe a espinha moral. Doía-lhe, sobretudo, ver sua filha, Emma, sobrevivendo como operária e com vergonha de seu sobrenome. Com veronal, pôs fim a seus dias.

Fomos salvos do abismo dessa reminiscência pelo vinho e pelo guefilte fish que chegaram. Depois, recuperado e constrangido, quis dar fim à história. Despiu os detalhes e fez filosofia. Disse que mentira atrai mentira e sangue cobra sangue. Foi econômico no epílogo desse caso que eu suponho ter tido um capítulo trágico a mais, envolvendo vingança. Adivinhando minha curiosidade, apenas me garantiu que, ao fim, Emma se saíra bem. Ele a visitava em San Telmo a cada tanto.

Cinquenta anos depois, quando a terra guarda quase todos os envolvidos e a Justiça já esqueceu o assunto, ele segue defendendo emocionado a memória do amigo derrotado pela maldade e ganância alheias. Já eu fiquei invejando aquela amizade irretocável, digna de um conto de Borges.

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