sábado, 7 de maio de 2016


 
07 de maio de 2016 | N° 18519 
DAVID COIMBRA

  • Por pouco, pouco, muito pouco, pouco mesmo

    Agente jogava pelada na ruazinha de areão do lado da Coorigha, lá onde uma vez fui atropelado por uma carroça, pois a gente jogava imitando a narração do Geraldo José de Almeida. Quando a bola batia numa das traves feitas por tijolos ou saía raspando, alguém sempre gritava:

    – Porrrr pouco, pouco, muito pouco, pouco meeesmo!

    Se a jogada era bonita, um balãozinho matando no peito, baixando na terra, uma bola entre as canetas do lateral, um rabo de vaca rumo à linha de fundo, o próprio autor do lance se encarregava de lhe passar um verniz:

    – Linda, linda, liiiinda!

    É uma pequena genialidade da comunicação, essa, de o sujeito conseguir se distinguir graças a uma boa sacada repetida com frequência.

    O Geraldo José de Almeida, quando narrador da extinta TV Difusora, apresentava o comentarista do jogo assim: – Larrrry! Piiiiiiinto de Faria...

    Esse jeito de dizer o nome do Larry tornava especial o comentário. Você ouvia o Larry com mais atenção. Se o Larry não fosse importante, não seria anunciado daquela forma, com aquela entonação, os erres quadruplicados, o i estendido, a exclamação depois do primeiro nome.

    Larrrry! Piiiiiiinto de Faria...

    E os comentários do Larry eram mesmo interessantes, porque ele era um homem muito ponderado, muito calmo, muito sensato.

    O comentário do Larry talvez fosse parecido com seu estilo de jogo. Nunca o vi jogar, claro, ele parou antes de eu nascer, mas todos dizem que Larry era um ponta de lança de grande qualidade técnica, de ótimo passe e perfeita compreensão do que ocorria em campo, embora sem muita movimentação. Chamavam-no “o cerebral Larry”. Fazia dupla com Bodinho, o segundo maior cabeceador da história do Inter, depois de Escurinho.

    Ou seria o primeiro? Seja.

    Larry morreu na sexta, por isso falo dele. Eu o conheci. Uma pessoa afável, bem-humorada, cordial, de sorriso fácil. É importante haver pessoas assim no mundo.

    Quando escrevi o livro sobre a história dos Gre-Nais, em parceria com o Nico Noronha, entrevistei Larry algumas vezes, e também seu maior marcador, o zagueiro Aírton Ferreira da Silva, o Pavilhão.

    Quase todas as pessoas que viram Aírton jogar asseguram que ele foi o maior zagueiro da história não só do Rio Grande, mas do Brasil. Ele fez parte de um supertime do Grêmio, montado por Oswaldo Rolla, que seria campeão 12 vezes, uma façanha.

    Esse time foi responsável por Larry não ter conquistado uma fieira de títulos pelo Inter – ele foi campeão gaúcho apenas em dois anos, 1955 e 1961.

    Mesmo assim, Larry era temido no Olímpico, sobretudo porque já no seu primeiro Gre-Nal, em 1954, havia marcado quatro gols.

    Então, numa temporada em que Larry parecia especialmente inspirado, os dirigentes gremistas é que se sentiam especialmente apavorados só de pensar em enfrentá-lo em um Gre-Nal. Foi por isso que, antes de um clássico, um dirigente do Grêmio procurou Aírton para fazer-lhe um pedido estranho:

    – Amanhã, bate no Larry. Aírton se escandalizou. Ele era famoso por jamais cometer faltas, jogava limpo, desarmando o adversário tão somente com sua técnica superior.

    – Não bato – respondeu o zagueiro, o orgulho lhe levantando o queixo. - Então nós vamos perder o Gre-Nal – gemeu o dirigente. – O Larry está jogando demais. Bate. Por favor. Bate.

    – Não bato.

    Mas o dirigente seguiu insistindo. Bate, bate, bate. Aírton só fazendo muxoxo, que zagueirão também faz muxoxo. Mas foi tanta insistência, que ele se pôs em dúvida. Consultou amigos, colegas, parentes. Todos aconselhavam:

    – Bate! Então ele decidiu bater. Na noite da véspera do clássico, mal conseguiu dormir, tal a ansiedade que lhe provocava a resolução. Ele ia bater.

    Já no começo da partida, a bola sobrou entre os dois, Aírton aprumou o corpanzil, engatilhou a perna como se fosse uma bazuca e... bateu. Mas bateu mesmo. Só que, como não estava acostumado à violência, e talvez constrangido por ter de apelar a ela, desequilibrou-se e se machucou. Ele, Aírton, é que acabou jogando o Gre-Nal lesionado.

    Tudo isso pelo medo que Larry inspirava.

    Ao ouvir essa história, narrada pelo próprio Aírton e depois confirmada por Larry, fiquei pensando como aquele homem de gênio tão doce podia despertar tamanho horror. Não era à toa que Geraldo José de Almeida o anunciava com aquela imponência:

    – Larrrry! Piiiiiiinto de Faria...

    Sabia das coisas, o Geraldo José de Almeida. Sabia das coisas, o Larry.

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