14 de maio de 2016 | N° 18525
DAVID COIMBRA
Queria um cachorro
Um dia vou ter um cachorro. Não que nunca tenha tido um. Tive.
Chamava-se Banzé, como o cachorro dos sobrinhos do Donald, o Huguinho, o Zezinho e o Luisinho.
Eu gostava daqueles três patinhos. Resolviam os problemas consultando o Manual do Escoteiro. Quando a Disney lançou um manual que era para ser igual ao deles, capa amarela, mais de 300 páginas, vendi jornal e garrafa até juntar dinheiro para comprar um. Assim formei a coleção completa dos manuais da Disney. O do Tio Patinhas, sobre, digamos, economia. O do Peninha, sobre jornalismo. O do Mickey, sobre detetives. O do Zé Carioca, sobre futebol.
Esse do Zé Carioca foi lançado pouco antes da Copa de 1974, eu já tinha 12 anos e conhecia todas as escalações dos times do Brasil, até a da Portuguesa de Desportos, onde jogava o Eneas, com a camisa 8. Naquele ano, o Brasil montou uma Seleção que meteria sete em qualquer uma que pudesse ser feita hoje. No gol, Leão, famoso pelo seu gênio e por ter “as pernas mais bonitas do Brasil” (eu não concordava, preferia as da Sandra Brea); na zaga, Luizão Pereira, o Chevrolet; na lateral-esquerda, Marinho Chagas, o Vanusa; no meio, Paulo César, o Caju; na frente, Jairzinho, o Furacão; e, para arrematar, o melhor de todos, Rivellino, o Patada Atômica. Time com epíteto sempre joga mais.
Mas havia também a Holanda de Cruyff, o Holandês Voador, e a Alemanha de Franz Beckenbauer, o Kaiser, o homem que não sabia qual era a cor da grama, porque nunca olhava para baixo quando jogava.
Portanto, o Brasil perdeu a Copa, para minha frustração.
Naquela época, eu não tinha mais cachorro. Não tive nenhum outro, depois do Banzé. Ele faleceu de forma trágica: desprendeu-se dos meus braços e, por algum motivo, resolveu atravessar a rua. O que teria chamado a atenção de Banzé? A provocação de algum gato vadio ou a sinuosidade de alguma gatinha? Não sei. Sei que ele tentou atravessar a rua, que até era bem calma, mas justamente naquele momento vinha um carro, que acertou o pequeno Banzé em cheio. Ele deu dois suspiros e depois morreu.
Provavelmente por isso não quis mais cachorro. Tive um galo, o Alfredo, que foi assassinado e servido no almoço de domingo (não comi!). Tive duas tartarugas, mas elas não eram muito animadas. Tive pintassilgos, caturritas e canarinhos, mas hoje não manteria preso um passarinho – tenho pena. Passarinho na gaiola é coisa antiga. O Rivellino era dono de um viveiro de passarinhos, aliás.
Ah, tive uma codorna, que me seguia por toda a casa. A Matilde. Amava a Matilde, mas ela também foi assassinada, por um vizinho maligno que não gostava de seus gritos e lhe acertou uma pedrada.
Ainda penso em Matilde.
Mas agora queria um cachorro. Um cachorro grande, um pastor alemão parecido com o Rin-Tin-Tin. Eu o chamaria de Kaiser. Não como o Guilherme II; como Beckenbauer e a cerveja. Ele estaria sempre comigo, com sua lealdade canina. Vejo-me sentado numa poltrona confortável de frente para o mar. Na mesinha ao lado há um prato de torpedinhos de siri e uma taça de algum tinto honesto. Com uma mão, seguro o livro que leio, com a outra, afago a cabeça do velho Kaiser.
O mar rumoreja a 50 metros de distância e o calor de um raio de sol que entra pela varanda me dá preguiça. Começo a sentir um sono envolvente. Não me dou o trabalho de fechar o livro, deixo que caia aberto no meu colo. Vou fechando os olhos. Posso dormir tranquilo, meu amigo está vigiando. Sim, ele estará sempre comigo, o bom e velho Kaiser.
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