07 de maio de 2016 | N° 18519
CARPINEJAR
A esperança da mãe
A morte demora a acontecer, mesmo depois da morte. É lenta e vagarosa quando se ama. A minha namorada Beatriz perdeu a sua mãe em março, vítima de leucemia, doença que a levou em apenas três semanas.
Ia embora a sua pessoa favorita. As duas dividiam o apartamento, as caronas e as viagens de férias. Amigas a ponto de nunca esconderam nada uma da outra, por mais que preponderasse a diferença de idade e de geração.
O enterro não foi a parte trágica da despedida. Era acenar para o corpo – e o hábito é acreditar que o corpo voltaria no dia seguinte. Complicado é se desvencilhar aos poucos da proteção e da confidência maternas. Avisar aos amigos que ela não estará mais aqui, fazer os mesmos caminhos e restaurantes e responder, com as lágrimas já domesticadas pelos cílios, as perguntas constrangedoras e repetidas de “como está a sua mãe?”.
A sequência mais pesada estava por vir: esvaziar o guarda-roupa. Não há tarefa tão ingrata e dolorosa. Ainda mais para uma mulher que desfrutava de manequim parecido e partilhava as peças com a mãe. A roupa é o último reduto da saudade: onde o cheiro do colo e do cuidado emana como se fosse ontem.
Trata-se do verdadeiro velório, aquele que é consumado sozinho, longe do amparo dos outros, no ritual de dobrar caprichosamente o fim do familiar na mala para uma viagem definitiva.
Os olhos da namorada tinham medo do que podiam encontrar – sofriam a ansiedade de recolher um recado, um símbolo, um aviso pós-morte. Havia um cuidado vigilante na hora de revistar os bolsos sob o impacto de encontrar um bilhete com letra tremida que reabrisse a fé. Nada de assustador surgiu, a não ser as lembranças puras de quem ouvia restos das conversas de antigamente.
– Este é o chambre que a minha mãe colocou na lua de mel.
– Este é o casaco que ela comprou em Gramado.
– Este é o cinto que ela trocou a fivela.
– Esta é a camisa que ela roubou de mim e fingi que não vi.
Ela controlava a sua dor, até perceber vestidos recentemente comprados e que não haviam sido usados. Ali, surpreendida pelas etiquetas, ela se ajoelhou na cama, soluçou o que deu, e percebeu que ninguém morre sem querer continuar vivendo.
E teve que, corajosamente, enterrar a esperança de sua mãe.
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