23 de maio de 2016 | N° 18532
DAVID COIMBRA
A música mostra a mudança
Eu tinha cá uma tese que a Cláudia Laitano meio que destruiu. Mas só meio quê.
A Cláudia Laitano está passando uma temporada em Paris. A Cláudia Laitano é uma parisiense que, por engano, criou-se no centro de Porto Alegre. Uma parisiense de alma, tanto quanto eu, na alma, sou suburbano do IAPI profundo.
Mas a minha tese.
Digo que você pode avaliar um povo por sua arte. A arte é o produto mais requintado da civilização. Aparentemente, trata-se de atividade intelectual.
Aparentemente.
Na verdade, a arte vem direto do espírito. A arte é a sublimação da selvageria humana. A civilização oprime, a arte liberta. Você não pode dar um soco no vizinho? Você pinta um quadro. Michelângelo, Van Gogh, Picasso e Dostoiévski eram assassinos em potencial.
No Brasil, a maior expressão artística é a música popular. Na Alemanha é a chamada Grande Música, na França da Cláudia Laitano é a literatura, na Inglaterra é o teatro, nos Estados Unidos é o cinema. No Brasil é a música popular.
Bem.
No começo do século 20, o Brasil tinha a gravidade dramática de um Vicente Celestino. Um homem que havia se tornado um ébrio porque tentava esquecer aquela ingrata que ele amava e que o abandonou. Um homem que ansiava cruzar pela porta aberta, que levava o emblema de uma cruz, uma porta que não se fechava e que tinha o nome de Jesus.
Natural: era o Brasil dos primórdios da República, ainda oitocentista, mal egresso da escravidão, um Brasil rural, de parcas conexões entre os Estados, quase que isolado do resto do mundo.
Depois, vicejaram a boa malandragem de Noel e a ginga de Pixinguinha, ainda mesclada com a dramaticidade de um Chico Viola e de um Ataulfo Alves, pois o Brasil de Getúlio era assim: melodramático e malandro ao mesmo tempo. Era o Brasil do rádio, o primeiro veículo de integração nacional. O Brasil do Rio.
O samba-canção fermentado nas boates cariocas foi o sucessor desse movimento. O samba-canção de Dolores Duran, Ary Barroso, Antônio Maria e Lupicínio foi a sofisticação dos sentimentos da época. Havia poesia na dor. Era bonito sofrer por amor. Mas sofria-se internamente, no escuro das boates, de traje esporte completo, porque, da mulher, esperava-se o recato.
A Bossa Nova de João Gilberto, Vinícius e Tom arrancou o amor e a dor das boates enfumaçadas e os expôs nas areias da praia. Era o Brasil de Juscelino, alegre e otimista.
Aí veio o golpe, e o Brasil teve de se “internalizar” de novo, digamos assim. Tornou-se mais intelectual, mais calculista, porque precisava pensar para dizer o que devia ser dito. Chico & Caetano pintaram o retrato daquele país.
Então chegaram os anos 80 e algo mudou. A Rede Globo havia integrado e pasteurizado o Brasil. Ainda havia Titãs, ainda havia Cazuza, mas o Brasil estava se tornando mais violento e mais impaciente.
E agora, nestes tempos nervosos, em que se tem de ter cuidado para entrar em casa e estacionar o carro, em que todas as esperanças políticas faliram, em que a opinião do desconhecido se torna conhecida e geralmente irrita, esses são tempos de velocidade alucinante e de consumo superficial. Donde, a música brasileira tornou-se superficial e de consumo veloz.
Mas a Cláudia Laitano me diz que não. Ela diz que concorda com minha tese até os anos 80, e garante que, se alguém procurar o bom, o encontrará. Que o bom continua nos nichos em que sempre esteve, que as massas brasileiras sempre foram acomodadas e aderentes ao dominante, como todas as massas, que a excelência sempre foi uma ilha, só que eu é que me perdi da ilha. Talvez concorde com ela. Não sei. Estou refletindo. Essa ilha, onde estará?
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