sexta-feira, 6 de maio de 2016


06 de maio de 2016 | N° 18518
CIDADANIA

VIDAS QUE NÃO CABEM EM UMA FOTO


CRIANÇAS ATENDIDAS na ONG Renascer da Esperança fazem graça em foto publicada no Diário Gaúcho em 2000. Dezesseis anos depois, o que é feito delas?

Uma imagem eternizada na capa do Diário Gaúcho de outubro de 2000 desafiou o jornal a remexer em gavetas fechadas pela história. É a primeira foto publicada da Renascer da Esperança, entidade assistencial do bairro Restinga, em Porto Alegre, que completa duas décadas em 2016. Nela, 13 crianças estão abraçadas à idealizadora do projeto, Rozeli da Silva. Quem são elas? Que rumos tomaram?

Com o auxílio da gari e da comunidade, a reportagem revela que nem todos continuaram sorrindo como naquela foto. Dos 13, nove foram localizados e terão as histórias contadas. Destes, quatro já morreram. Dois não completaram o Ensino Fundamental. Quatro não foram identificados. Em quase três meses de apuração jornalística, sequer o nome deles foi descoberto.

Durante a construção da reportagem, registrou-se um nascimento e uma morte. Os filhos de Rozeli não se tornaram famosos como os ídolos na infância. Apenas vivem. Sobrevivem. Ou deixaram de viver.

Até hoje, Rozeli guarda uma cópia da página. Orgulhosa, apresenta aos visitantes a folha envelhecida como uma relíquia dos primeiros anos da entidade. Quase 16 anos depois, os rostos estampados naquela foto, porém, se distanciaram da instituição. Alguns fazem questão de manter contato com a “mãe postiça”, como o coordenador administrativo Douglas Luis Abreu dos Santos, 24 anos.

IMAGEM QUE PERPETUOU SORRISOS

Entre os localizados, olhos arregalados ao se verem na cópia colorida e em tamanho de papel ofício. A falta das memórias impressas é comum entre as crianças daquela foto que hoje são homens e mulheres em busca da própria identidade.

Luana dos Santos Soares, 20 anos, custou a acreditar que era ela em meio às pernas de Rozeli. Não lembrava da cena. Na época, tinha quatro anos. Luana não tem guardada nenhuma foto da própria infância, pois perdeu as que tinha em uma enchente. Até por isso, teve dificuldades para se identificar.

Fábio Santos Ávila, 26 anos, viu a foto e se emocionou. As boas recordações estão na outra identidade vivida por ele, durante seis anos, como a travesti Brenda Raffler. Há dois anos, obrigado a voltar a se vestir com trajes masculinos, Fábio sobrevive dividido. O jovem, que não consegue abraçar as pessoas, quase não sorri.

Entre as crianças, pelo menos quatro tiveram os sorrisos perpetuados naquela imagem. Tombaram ainda na juventude, por conta da violência. Todos pertenciam a uma mesma família esfacelada pelas mortes prematuras. Stefany de Souza Nunes, 22 anos, não esquece o irmão Dionas Nunes Cordeiro, assassinado aos 19 anos. Na lembrança da Renascer, Dionas, ou Dioninha, como era conhecido, é um dos mais sorridentes ao lado de Rozeli.

Na época da imagem, cerca de 140 crianças e adolescentes eram atendidos pela gari, que vendeu a própria casa para se dedicar ao sonho de ajudar o próximo. O projeto completara quatro anos, dependia de doações e a sede funcionava em dois cômodos de alvenaria.

Lá, no turno inverso ao da escola, as crianças recebiam alimentação, recreação, tinham oficinas de pagode, rap, teatro e teclado, atendimento psicológico e doses extras de carinho. Rozeli acredita que, para muitos, aquele afago era o único ao longo do dia.

A entidade engatinhava como tábua de salvação das famílias mais pobres do bairro. Vinham das invasões sem saneamento básico, asfalto ou energia elétrica, que proliferavam nas áreas sem dono da Restinga.

Faltavam endereços oficiais, sobravam mazelas de todos os lados. Inexistia, inclusive, o dinheiro para pagar uma fotografia 3x4 das crianças do projeto. Por isso, quase 16 anos depois, tornou-se difícil reconstituir aquela foto de outubro de 2000. Nem Rozeli, sempre zelosa, lembra de todos.

aline.custodio@diariogaucho.com.br

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