sábado, 28 de maio de 2016


28 de maio de 2016 | N° 18537
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

O QUE PLANTAMOS


Os poderosos inteligentes sabem o quanto é admirável exercer a humildade

A sensação de poder exige do poderoso algumas virtudes. A mais importante delas é a perspicácia de entender que, neste terreno pantanoso, nada é absoluto nem ilimitado.

Os poderosos inteligentes descobrem precocemente o quanto é fácil e admirável nesta condição o exercício da humildade. Ao contrário dos subservientes por necessidade, os poderosos seduzem quando deixam claro que o poder “não lhes subiu à cabeça”.

Infelizmente, na maioria das vezes, a consciência da supremacia sobre seus pares gera comportamentos extravagantes e repulsivos que, como era de se prever, abrem caminho para a solidão e o abandono no futuro. Em algumas circunstâncias, em que a duração da idolatria é preestabelecida, seja pelo tempo de mandato do homem público ou pela transitoriedade do apogeu físico do atleta ou do artista, mais se exige inteligência na semeadura de afetos respeitosos ou não, que reverterão, logo adiante, em agradecimentos ou retaliações. 

Negligenciar esse destino é negar a inflexibilidade de vida, que só reserva para colheita o que plantamos. A constatação tardia do fracasso na construção desse futuro explica as atitudes destemperadas de políticos pós-mandato e os altos índices de drogadição entre ex-atletas e ex-famosos.

O riograndino apresentou as suas credenciais na primeira consulta. Tinha agendado para o primeiro horário e, quando a secretária lhe perguntou se cederia a vez para um paciente dependente de oxigênio, que confessara o temor de que seu reservatório pudesse terminar antes de chegar em casa, ele simplesmente disse: “O meu horário foi marcado com antecedência e não tenho nada a ver com isso!” Só soube desta cena no fim das consultas, mas ela teria sido apenas um prenúncio da trajetória de desamor que marcou a passagem dele pelo hospital. 

A ostentação e o desapreço que ele dedicou aos funcionários mais humildes encontraram ressonância na atitude dos filhos, que mantinham em relação a ele uma distância compatível com uma rigidez afetiva crônica. As referências elogiosas a mim sempre foram vistas com as reservas esperadas para uma relação em que um dos envolvidos estaria anestesiado e o outro empunharia um bisturi.

A evolução pós-operatória foi ótima, a internação foi curta, não houve tempo nem motivação para que nos gostássemos. E não nos gostamos.

Foi só na terceira ou quarta revisão semestral que “conversamos” pela primeira vez. Empobrecera, e a mulher bonita, mais jovem do que seus filhos, apresentada como esposa lá no início, era a parceira do quarto casamento e recentemente o abandonara. Não restara nada da arrogância antiga, e a necessidade de conversar era o preço da solidão. Nova e pungente. Ao sair, perguntou-me se podia me dar um abraço como agradecimento por tê-lo ouvido, e então senti uma dor por ele e cedi o abraço, não como quem simplesmente consola, mas como quem sente a necessidade aguda de compartilhar sofrimento. 

Só percebi a volubilidade da minha opinião depois que ele partiu. Bastou uma confissão de abandono para que eu sentisse uma pena enorme e esquecesse o quanto aquela punição tinha sido regada por uma vida de egoísmo e desamor. Talvez a minha comiseração tenha sido influenciada pelo pesar atávico que sinto dos ricos que viveram só para si e um triste dia descobriram, com desespero, que todo o dinheiro pode acabar antes que a vida termine.

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