pasquale cipro neto
26/05/2016 02h00O sempre intemporal Padre Vieira
Dia desses, uma manchete ruim (mais uma) de um site me trouxe à mente uma velha questão da Fuvest baseada num trecho de um sermão de Vieira. A manchete era esta: "Corinthians e Grêmio lideram possíveis baixas que a Copa América trarão".
Há um erro de concordância nesse título. Flexionada no plural, a forma "trarão" deve ser trocada por "trará". É a Copa América que trará as baixas: "...lideram possíveis baixas que a Copa América trará".
Esse título me trouxe à mente uma questão da Fuvest baseada neste fragmento do intemporal "Sermão de Santo Antônio aos Peixes", de Vieira, pregado em São Luís em 1654: "A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande".
O candidato deveria reescrever o segundo período do trecho substituindo "escândalo" por "escândalos" e fazendo as adaptações necessárias. Foi esta a resposta dada por boa parte dos que erraram: "Grandes escândalos são estes, mas a circunstância os fazem ainda maiores".
De novo, apareceu um plural indevido. A forma verbal "fazem" deve ser trocada por "faz", já que o seu sujeito é "a circunstância"; é ela, circunstância, que faz ainda maiores os escândalos. Vamos lá: "Grandes escândalos são estes, mas a circunstância os faz ainda maiores".
O erro provavelmente decorre da influência que o termo mais próximo do verbo (o pronome "os") exerce sobre o redator ou falante.
Vale a pena aproveitar esse maravilhoso sermão para destacar um fato linguístico interessante. Releia: "Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos". O caro leitor notou o valor das formas verbais "fora", "era", "comeram" e "bastara"?
Como se sabe, os tempos verbais não podem ser tomados só pelo seu valor específico. É pobre, por exemplo, limitar a definição do presente a algo como "tempo que indica o fato que ocorre no momento da fala". Esse é o valor específico do presente, o que não anula o seu emprego em construções como "Volto amanhã", "Todo homem é mortal" etc.
O mesmo ocorre com o pretérito mais-que-perfeito, que, como vimos recentemente, indica fato passado perfeito, ou seja, totalmente concluído, anterior a outro, também perfeito. Vieira emprega o mais-que-perfeito com valores diferentes do específico: "fora" está por "fosse"; "comeram", por "comessem"; "bastara", por "bastaria". E "era", do pretérito imperfeito do indicativo, está por "seria", do futuro do pretérito do indicativo. Tudo dentro dos cânones da língua literária (de ontem e de hoje, é bom que se diga).
"E eu? Menos a conhecera mais a amara?" Isso não tem três ou quatro séculos, não. Está na canção "O Estrangeiro", de Caetano Veloso. Vamos à "tradução": "E eu? Se a conhecesse menos, mais a amaria?".
Não resisto à tentação de exaltar a atualidade de Vieira ("Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos."). Qualquer semelhança com o que anda acontecendo no Brasil... É isso.
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