quarta-feira, 4 de maio de 2016



04 de maio de 2016 | N° 18516 
MARTHA MEDEIROS

A extinção da vergonha

Fragmentos da infância: quando garota, se a professora me pegava colando, eu sentia vergonha. Sentia vergonha também quando, estando de vestido, sentada com as pernas entreabertas, alguém chamava minha atenção porque a calcinha estava aparecendo. Fui uma menina que se envergonhava quando um menino se aproximava para puxar conversa.

Com o tempo, a vergonha e a timidez amenizaram, mas até hoje ruborizo diante das minhas gafes. Fico sem graça quando cometo um erro gramatical e os leitores alertam. E também quando troco o nome das pessoas ou não as reconheço na rua – acontece direto. Não é caso para autoflagelo, já que é da nossa natureza se atrapalhar, mas sentir um pouquinho de constrangimento é educativo, ajuda a formar o caráter. Quase me orgulho de manter um hábito tão antigo e em desuso.

Ninguém mais sente vergonha. De coisa alguma. Nem daquilo que fala, nem do que veste, nem do que mente, nem do que paga, nem do que cobra, nem do que rouba, de nenhum flagrante desonroso.

Bisbilhotando no computador, encontrei um vídeo em que o filósofo Mario Sergio Cortella diz que a vergonha tem uma fonte matricial. Significa que, mesmo que sejamos totalmente despudorados, ao menos resta em nós (ou deveria restar) o receio de envergonhar a matriz – e nossa matriz é a mãe. Todos os nossos valores de conduta deveriam ser submetidos a uma pergunta simples: “O que minha mãe diria se soubesse que eu...?”. 

Se ela compreendesse, se considerasse coisa de pouca gravidade, você estaria absolvido. Mas se a reação dela fosse fechar todas as janelas da casa e retirar sua foto do porta-retratos, não haveria dúvida: você poderia até ter conseguido engambelar a polícia, mas teria sido reprovado no mais implacável teste de dignidade. Uma mãe envergonhada de um filho é o fundo do poço, não há como descer mais.

Venho a este assunto não só pelo fato de o Dia das Mães estar logo ali, no próximo domingo, mas para ilustrar este momento que estamos vivendo, em que ninguém se avexa com mais nada e ainda cita a família como inspiração para seus desmandos. O sujeito perde a compostura em nome do pai, do filho, da mãe, dos tios, dos sobrinhos, dos netos e da sua ilustre cara de pau.

Encerro esta coluna com a mesma frase com que Cortella encerrou o trecho da palestra a que assisti em vídeo, e ele há de desculpar minha falta de originalidade. É que a citação foi tão oportuna, que merece ser expandida. É de Immanuel Kant, que no século 18 sentenciou: “Tudo o que não puder contar como fez, não faça”.

Com esse pensamento na cabeça e mais a foto da mãe dentro da carteira, só dinheiro honesto entraria ali, por exemplo. Já seria uma vergonha a menos.

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