18 de março de 2016 | N° 18476
CLÁUDIA LAITANO
Pílulas de ilusão
Em meio a tantas aflições rocambolescas na política e na economia do país, passou quase despercebida a aprovação na Câmara dos Deputados, na semana passada, do projeto de lei que libera o uso da “pílula do câncer” (fosfoetanolamina).
Apesar de aparentemente não ter nada a ver com direita ou esquerda, governo ou oposição, o uso político de um remédio que não conta com a chancela de médicos e pesquisadores e que na melhor das hipóteses não faz bem nem mal (há um estudo que associa o medicamento ao crescimento de tumores de mama em ratos) ajuda a explicar por que estamos estacionados em uma espiral de malfeitos e desinteligências.
Está tudo ali na pílula mágica do dr. Pangloss: desprezo generalizado pela ciência de ponta, leigos tomando decisões graves sem consultar os especialistas (tanto no STF quanto no Congresso), mau uso do parco dinheiro público (preciosos R$ 10 milhões que poderiam ser destinados a cientistas sérios despejados em uma pesquisa que atravessou o samba por pressão popular), ignorância, autoengano e, claro, populismo em doses asininas.
Perdi minha mãe e alguns amigos queridos para o câncer. Vi outros serem curados, alguns de maneira espetacular e contra todos os prognósticos, graças a procedimentos muito recentemente desenvolvidos pela medicina mais avançada. Sei que, diante da dor e da perspectiva bastante concreta da finitude, até o mais racional dos pacientes pode tomar decisões desesperadas. Minha mãe chegou a ir até uma igreja que alguém recomendou como um local “infalível” de cura.
Mesmo assustada com a doença, o ritual lhe pareceu humilhante e assustador, e ela saiu correndo do templo poucos minutos depois de entrar – talvez mais abatida ainda do que antes. Morreria poucos meses depois. Steve Jobs, que não tinha nada em comum com minha mãe além da doença, acreditou que poderia vencer o câncer com a mesma determinação com que reergueu a Apple. Recorreu ao melhor que a ciência havia produzido até então, mas também não adiantou.
Todas as famílias têm histórias tristes como essas para contar. Mas, se hoje podemos comemorar casos de curas que seriam impossíveis há cinco anos, é porque muita gente está trabalhando em conjunto, em várias partes do mundo – e isso só é possível quando procedimentos científicos permitem que o conhecimento seja testado, compartilhado, aperfeiçoado.
Doentes e suas famílias nem sempre têm condições de decidir o que é melhor para eles sem a ajuda de um profissional de confiança. Por isso, é tão importante que o Estado garanta que eles sejam protegidos da ilusão e do charlatanismo. A ciência, como a democracia, não é perfeita, mas é o melhor que temos – e sem ela ainda estaríamos morrendo aos 30 anos à luz de lampiões. No Brasil, muitos cientistas têm sido heróis, conduzindo pesquisas que salvam vidas às vezes em condições precárias e com pouco ou nenhum apoio do governo. Investir na fosfoetanolamina é um escárnio contra eles – e uma vergonha para todos nós.
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