12 de março de 2016 | N° 18471
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO
JUÍZO E PERDÃO
A intransigência, que se tornou a marca registrada da civilização contemporânea, talvez tenha existido sempre, apenas não nos dávamos conta porque era muito difícil saber a opinião dos que não faziam parte do nosso restrito círculo de convivência.
Com as redes sociais, tudo o que acontece é jogado no mundo dos abutres da razão desnaturada que têm uma necessidade visceral de opinar, sem nenhum pudor, mesmo que o assunto não lhes diga respeito. Como calar a boca passou a ser interpretado não como um sinal de prudência e recato, mas, sim, de alienação, as pessoas se manifestam. E ainda mais esbravejantes se o tema tem alguma remota relação com uma opinião pré-formada ou no mínimo com a timidez assumida de um “ouvi dizer”. Isso lhe garantirá pelo menos um “curtir”.
Se o tema for técnico, era de se esperar que os acreditados no assunto se manifestassem primeiro, para depois, examinando prós e contras da argumentação, dar o seu pitaco em cima do exposto. Mas não, a premência de se fazer presente naquele fórum improvisado impõe que se exteriorize o que pensam sobre um assunto no qual nunca pensaram.
Como toda a bobagem pode ser sofisticada, o requinte fica por conta duma tendência moderna de se expressar por analogias, e então se chega à consagração da estultice quando o que foi usado como comparação não passa nem perto do comparado.
Mas o que mais impressiona não é apenas a necessidade de opinar, mas a compulsão e urgência por julgar. Ninguém se conforma com a função de promotor e se arvora logo à condição de juiz, e com uma intolerância implacável, característica de espíritos humilhados ou reprimidos. Uma sociedade constantemente fraudada e desprotegida explica, por exemplo, o sucesso de histórias que tratem de vingança, atribuível à nossa necessidade de retaliação, mesmo que nunca tenhamos sido agredidos. Uma espécie de vingança preventiva.
Por trás desse comportamento intransigente, está a nossa ausência completa de senso crítico que outorga-nos o direito de julgar os outros com modelos de perfeição que nos condenariam se tivéssemos a isenção de aplicá-los às nossas vidas.
Albert Schweitzer, o grande médico, filósofo e pensador, uma das maiores autoridades mundiais no estudo da ética, Prêmio Nobel da Paz, confessou que só se sentiu em condições de emitir julgamento sobre condutas quando assumiu seus próprios pecados e passou a ensinar que a condição mínima de um juiz é que ele seja capaz de condenar a si mesmo.
Aos 70 anos, mantinha viva a recordação de que, aos três ou quatro anos de idade, depois de sofrer uma picada de abelha numa das mãos, desabara num choro convulsivo que atraiu toda a família para consolá-lo, o que fez com que ele, encantado com o poder que esta cena lhe proporcionara, seguisse chorando por um longo tempo, depois que a dor há muito já passara. Na sua opinião, a consciência assumida dessa atitude como a sua primeira fraude, contribuiu para o aperfeiçoamento de sua capacidade crítica de julgamento, que deve caracterizar as pessoas equilibradas, generosas e puras. Essas criaturas imperfeitas que, por se reconhecerem assim, têm dificuldade de julgar seus semelhantes.
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