04 de março de 2016 | N° 18464
CLÁUDIA LAITANO
Diante do silêncio
Na mesma semana em que os Stones fizeram show em Porto Alegre e fãs enlutados lembraram os 20 anos do acidente aéreo que matou os Mamonas Assassinas, morreu no Rio de Janeiro, sem muito alarde, o último remanescente da formação original d’Os Cariocas, grupo do qual pouca gente se lembra hoje em dia, mas que, a partir dos anos 50, foi responsável por estabelecer um novo padrão de qualidade nas formações vocais do Brasil.
Li que no hospital, um dia antes de morrer, aos 88 anos, o pianista Severino Filho pediu que cantassem para ele a melodia de Ela é Carioca, de Tom Jobim – aquela dos versos “Eu vejo na luz dos seus olhos/ As noites do Rio ao luar / Vejo a mesma luz/ Vejo o mesmo céu/ Vejo o mesmo mar”.
Os Cariocas eram o anti-Stones – em quase todos os sentidos possíveis. Onde a banda de Mick Jagger é barulho, agitação e espetáculo, Os Cariocas eram sussurro, doce balanço a caminho do mar, delicadeza. Embora Mick Jagger e Severino Filho tivessem apenas 15 anos de diferença, é como se o primeiro fosse de um século e o segundo de outro, tamanha a distância entre a juventude dos anos 60 e a geração anterior.
A atitude rock’n’roll, inaugurada por bandas como os Stones há mais de 50 anos e identificada então com o gosto “jovem”, venceu a atitude melodiosa com a qual parte dos adultos de meados do século 20 se identificava. A maior parte dos adultos que lotaram o show dos Stones nesta semana guarda pouca ou nenhuma identificação com o universo sonoro anterior ao rock. A morte de Severino Filho, ao som de uma doce e ondulante melodia dos anos 50, me pareceu tão comovente quanto o suspiro final da última ararinha-azul.
Espero que não soe muito mórbido confessar que já imaginei as canções que gostaria que meus amigos ouvissem no meu funeral. A saber: algo transcendente, mas não solene demais. Com um toque de bom humor, mas não a ponto de empolgar muito os tradicionais piadistas de velório – ninguém escapa deles. Uma seleção de músicas que combinasse século 20 e 21 na mesma medida, porque vivi ambos intensamente, com ênfase em Beatles e Radiohead, que além de serem minhas bandas preferidas nunca fazem feio em cerimônias.
A ideia de despedir-se da vida ao som de uma bonita canção, dividindo a experiência com os amigos e a família, evidentemente é muito melhor do que lavrar um testamento musical para ser fruído in memoriam. Infelizmente nem todos podem contar com essa gentileza do destino. Severino Filho teve essa sorte. Ao som de Ela é Carioca, o velho pianista revisitou a luz, o céu, o mar e as noites do Rio ao luar.
Caymmi cantava que é doce morrer no mar – ideia que só funciona como licença poética. Doce mesmo é dissolver-se em uma melodia que nos transporta para o cenário onde fomos mais felizes. E o resto é silêncio.
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