Entrelacos

05 de março de 2016 | N° 18465 
DAVID COIMBRA

A manipulação lulista

Sérgio Buarque de Holanda era daqueles antigos intelectuais de cultura de aço, da época remota em que os homens tinham tempo e disposição para se acomodar numa poltrona, com uma taça de bom tinto ao lado, e passar horas degustando um livro, sem atender ao assobio do Whats. Não por acaso, legou aos brasileiros uma obra definitiva, Raízes do Brasil, e um compositor definitivo, seu filho Chico.

Mas o velho Sérgio causou também eterna confusão na mente de seus compatriotas com seu conceito, expresso no livro, do “brasileiro cordial”.

Essa ideia enlevou muitos dos nossos excitados patriotas. Era bom pensar em nós mesmos como pessoas afáveis, contrapontos de humanidade, por exemplo, à severidade germânica, à fleuma britânica, à afetação francesa.

Éramos os “brasileiros bonzinhos”, como gemia a macia beldade americana Kate Lyra num programa de televisão dos anos 1970. Ela gravou até disco com esse título.

Aliás, lembro-me da febril atuação de Kate Lyra no filme O Convite ao Prazer, de Walter Hugo Khouri. Ela interpretava Miss Harriet, secretária do protagonista, que foi o que então se chamava de garçoniere do chefe e... Mas tergiverso. Voltemos ao brasileiro cordial de Sérgio Buarque de Holanda.

Ocorre que, montados nessa suposta base teórica, nós brasileiros passamos a nos considerar um povo tolerante e, digamos, boa-praça.

O próprio Sérgio Buarque de Holanda correu para explicar que não era bem isso que queria dizer com o termo “cordial”. O adjetivo, ressalvou, refere-se, etimologicamente, ao que vem do coração. Somos emotivos. Para o bem e para o mal.

O FUNERAL DA PRINCESA

Pensei muito em Sérgio Buarque de Holanda enquanto assistia ao funeral da princesa Diana, em 1997. Elton John sentou-se ao piano em plena Abadia de Westminster e, ante os olhares da família real e debaixo das luzes das câmeras, cantou Candle in the Wind.

É uma música linda e compassiva. Quando ele começou: “Goodbye England’s rose...”, confesso, fiquei tocado. Senti o peito apertar e imaginei: esses ingleses agora estão cascateando lágrimas. Minha referência eram os funerais públicos de Tancredo Neves e Ayrton Senna, que afogaram o Brasil em pranto e desespero. Só que, quando as câmeras passearam pelos bancos da Abadia e pelo público lá fora, o que vi foi... a tal fleuma britânica. Eles estavam tristes, mas compostos.

No máximo, alguém baixava os olhos e fungava discretamente. Gritos? Soluços? Gente rojada ao solo duro? Nada disso. Apenas digna contrição.

Eis um comportamento quase incompreensível para nós, cordiais brasileiros, acostumados aos sentimentos grandiloquentes.

ELE ME FEZ CHORAR

As nossas paixões expostas, como reparou Sérgio Buarque de Holanda, certamente são ótimas na conquista de afetos. Na despedida do primeiro ano da escola, meu filho se emocionou, avançou para a professora e a abraçou, chorando. Ela não estava preparada para aquela demonstração de ternura. Pega de surpresa, chorou também. Dias depois, encontrei-a por acaso, e ela ainda estava perturbada. Balbuciou:

– He makes me cry...

Sim, para isso, nossa cordialidade é positiva. Nem tanto no trato da coisa pública.

COMO SE FOSSE A BANANALÂNDIA

Que tristeza a reação de parte dos brasileiros ao depoimento de Lula à Polícia Federal. Que demonstração de atraso, de tacanhice, de cidadania rudimentar, como se fôssemos a Bananalândia que não somos.

Não me refiro à reação passional de populares. Não. Lula é uma figura carismática, natural que desperte paixões favoráveis e contrárias. Refiro-me aos líderes políticos, em especial aos líderes do PT e dos partidos aliados ao governo.

Ouvi falar em “ação policialesca”, “prisão política” e “estado de exceção”. Por favor! Está ocorrendo exatamente o contrário. A ação da Polícia Federal não apenas está dentro da estrita legalidade como foi feita com critério e ponderação.

“Duzentos policiais?”, espantaram-se alguns governistas. Mas será que não assistiram às cenas de confronto ocorridas em São Bernardo e Congonhas? É claro que a Polícia Federal tinha de tomar todo o cuidado, até para preservar o próprio Lula.

As suspeitas que pesam sobre o ex-presidente são gravíssimas. As empreiteiras que lhe fizeram doações, que lhe pagaram por palestras, que financiaram sua mudança de Brasília para São Paulo são as mesmas empreiteiras envolvidas no escândalo de corrupção da Petrobras e as mesmas que conseguiram empréstimos no BNDES para tocar obras em países governados por regimes amigos do PT.

Como não investigar?

As investigações são legítimas e indispensáveis a um país que se pretenda democrático.

Alguém acredita que Lula será preso, se for inocente? 

Não será. Ao contrário, sairá fortalecido.

Mas os líderes do PT e do PC do B, entre outros, esses, não. Esses desvestiram a capa de democratas. A ânsia de proteger o Pai Lula implodiu-lhes o discurso de defensores da normalidade republicana, do funcionamento das instituições e de garantia da independência da Polícia Federal e da Justiça.

Por que Lula não pode ser instado a depor? O que o torna diferente de outros brasileiros? Terminado o depoimento, Lula fez um discurso para os habituais bajuladores. Repetiu a bazófia de herói dos pobres, disse estar magoado e reclamou que achava ser merecedor de mais respeito.

A balela do homem que acabou com a pobreza, tudo bem, já se esperava. Mas “magoado”? “Desrespeitado”? Que história é essa? Lula contou com toda a deferência por ser ex-presidente: não precisou ir a Curitiba, foi conduzido em carro sem identificação, foi cercado por um aparato de proteção. O que ele queria, além disso?

Nesse momento, ao vir com essa conversa de paladino dos pobres atacado pela elite pérfida, Lula se igualou aos líderes dos partidos que o apoiam: tentou, exatamente, manipular a emotividade do brasileiro. É o apelo ao irracional, à paixão, ao que de pior nos traz a nossa cordialidade descoberta por Sérgio Buarque de Holanda.

Se Lula for inocente, que erga o queixo e afronte o mundo. Se for culpado, que seja condenado. Que se faça, tão somente, justiça. A justiça não há de ser cordial.