Instante mágico
01/03/2016 02h00
SÃO PAULO - Pesquisa Datafolha mostrou que a maioria dos brasileiros (51%) é contrária ao aborto mesmo quando há diagnóstico de microcefalia. No caso de grávidas que foram infectadas pela zika, mas cujos embriões não tiveram a malformação confirmada, podendo ou não ser portadores da síndrome, a rejeição ao aborto é ainda maior (58%).
A ideia que sustenta tal posicionamento é a de que o ser humano surge no instante da concepção. Quem partilha desse raciocínio tende a considerar qualquer forma de aborto como um homicídio, ainda que por vezes justificável, como nos casos de perigo de vida para a mãe ou gravidez resultante de estupro.
Essa é uma descrição coerente –e que não impediria de acrescentar novas condições, como a microcefalia ou outras doenças graves, às que tornam o aborto legalmente permissível. Penso, porém, que existem outras descrições mais adequadas.
O problema de fundo é que a noção de instante não combina com a embriologia, que é muito mais bem explicada em termos de processos. Isso fica claro se considerarmos que o próprio "instante" da fecundação não é um instante, mas um intervalo que varia de 24 a 48 horas. Esse é o tempo que transcorre entre a chegada do espermatozoide ao óvulo e a fusão dos gametas. A partir de quando é ilícito interferir? Quando o espermatozoide toca na membrana do óvulo? Quando o penetra? Quando a fusão tem início? Quando é concluída? Uma hora antes vale mexer?
Acho que faz mais sentido abandonar a ideia de instantes mágicos, que estão mais em nossas mentes essencialistas que na natureza, e pensar o desenvolvimento fetal como processos. O bônus dessa concepção é que ela nos dá mais liberdade para fazer com que a lei positiva fixe um cronograma de proteções legais ao feto. No primeiro trimestre, o aborto é decisão soberana da mulher. À medida que o feto se desenvolve, as restrições vão aumentando.
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