sábado, 5 de março de 2016



05 de março de 2016 | N° 18465
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

O ASSUNTO DESPERTA INTERESSE CADA VEZ MENOR, SOTERRADO PELA AVALANCHE DA INDIFERENÇA

QUANDO A SOLIDARIEDADE SE BASTA


O Éderson tem uma cara boa e quase fecha os olhos quando sorri. A mão é áspera e aperta com determinação. Mora numa pequena comunidade do Interior e o sotaque inconfundível o identifica com um alemão simpático, meio tosco. A primeira vez que entrou no consultório, pensei que fosse familiar daquele paciente, um velho muito emagrecido, que mal entendia e não falava português. Participou da consulta fazendo perguntas relativas às questões práticas de internação, onde se dirigir, melhor horário, essas coisas.

Depois de alguns meses e repetidas visitas, com ele sempre capitaneando uma nova turma, restavam duas alternativas: ou a família do Éderson era realmente muito doente, ou ele tinha algum cargo na prefeitura, ou o que fosse, que lhe destinava esta tarefa de escudeiro profissional. Quando quis saber, ele resumiu: “Ah, doutor, a gente mora numa biboca onde todo mundo se conhece e esta minha gente além de muito burra, ainda fala tão mal a língua ‘de vocês’ que quase ninguém entende. Se não ajudo, eles não têm a quem recorrer.”

Com a determinação de descobrir como a coisa funcionava, perguntei o que ele ganhava com isso, ele fez uma cara de surpresa e disse: “Às vezes, eles fazem um churrasco pra mim no ‘salón’ da igrejinha. Mas eu nunca peço nada pra mim. Mentira, digo sempre que marquem as consultas para sexta feira que é o dia que atrapalha menos meu trabalho na roça!” O encanto da solidariedade era a única remuneração dele, que mais do que lhe bastar, evidentemente o orgulhava.

Muda a cena e os artistas, conserva só o expectador. É segunda-feira de Carnaval, final da manhã, o dia está lindo e a praia lotada. De repente uma onda mais forte avançou uns metros na areia e trouxe de roldão seis chinelos de dedo.

Uma senhora loira, cuja esteira tinha sido alcançada, ergueu-se com calma e quase sem tocar na areia lavada pelas ondas, carregou a sua elegância impressionante em direção ao mar que recuara depois daquela estocada. Determinada a resgatar só o que era seu, identificou entre os chinelos ondulantes, os dois que lhe pertenciam, apanhou-os e retornou serenamente ao seu lugar.

A gratificação de ajudar, provavelmente foi contraposta à necessidade de falar com desconhecidos pouco interessantes a fim de identificar as donas distraídas das pobres sandálias, que seguiam lá, indefinidas entre serem resgatadas por alguém, ou engolidas pelo mar que dava pinta de ter mudado subitamente de humor. No final, claramente optara por cada um cuidar do que é seu.

Parei para observar a sequência. A senhora elegante recuou a esteira para uma zona segura e retomou a leitura. O livro não devia tratar de solidariedade. Esse assunto desperta interesse cada vez menor, soterrado pela avalanche da indiferença que nos rodeia e consome. Estamos conseguindo o prodígio de criar um paradoxo: a solidão mais absoluta num universo cada vez mais povoado.

Melhor que o Éderson siga na sua rotina de solidariedade silenciosa, e nem fique sabendo que é um modelo em extinção, capaz de oferecer um dia da semana só para renovar em si o prazer de ajudar.

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