11 de março de 2016 | N° 18470
CLÁUDIA LAITANO
Pedras e setas
Tempos atrás, quando ainda não era tão conhecido, o cantor Criolo foi a um programa de TV ao vivo. No intervalo entre uma música e outra, o apresentador fez piada com o fato de um telespectador, pela internet, ter comparado o rapper paulista com o cantor britânico (abertamente gay) Freddie Mercury, que morreu em decorrência da aids há 25 anos. Para surpresa do público e do próprio apresentador, Criolo fechou a cara e rompeu a regra número 1 da camaradagem de botequim – aquela segundo a qual toda piada vale a pena, inclusive quando a alma é bem pequena.
“Um ícone, né? Baita artista. Se eu for 10% do que esse cara foi artista no mundo…”, respondeu. Não satisfeito, voltou ao assunto pouco depois: “Freddie, o Ney Matogrosso. Ícones que estão acima de outras coisas”. A reação antibrucutu foi tão rápida e inesperada que o vídeo viralizou logo em seguida.
Reagir ou não reagir, eis a questão. Ou, como diria com muito mais elegância, o próprio Hamlet: “Será mais nobre/ Em nosso espírito sofrer pedras e setas / Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja, / Ou insurgir-nos contra um mar de provocações / E em luta pôr-lhes fim?”.
Sempre penso muito sobre isso, sobre a forma como as pessoas se comportam – tanto diante das “pedras e setas” do destino quanto das provocações e das indignidades. Talvez por andar de táxi todos os dias, estou acostumada a ouvir discursos inflamados e definitivos sobre diferentes assuntos, em geral envolvendo soluções rápidas e extremas para todos os problemas do Brasil: matar, prender, torturar, arrancar partes, sufocar.
Diante desse tipo de conversa, deveria ficar quieta ou me posicionar, como fez Criolo? Devo deixar que os outros façam os discursos mais delirantes até que esvaziem o pote até aqui de mágoa que trazem no estômago, evitando assim um bate-boca ou um mal-estar, ou sou moralmente obrigada a romper a ladainha com um singelo “não é bem assim”, “isso seria um crime”, “na democracia isso não é permitido”? A partir de que momento o silêncio deixa de ser neutro para tornar-se covarde ou cúmplice?
Nos últimos tempos, a violência verbal, dentro e fora dos táxis, deixou de mirar apenas os “suspeitos de sempre” – bandidos, políticos, torcedores do time adversário – para se espalhar para um grupo maior e mais difuso: gente mais rica ou mais pobre, mais à direita ou à esquerda, vizinhos, conhecidos do Facebook. Em um contexto de insegurança e instabilidade, é fácil ceder à impressão de que estamos em guerra com o resto do mundo e que portanto todas as reações, mesmo as mais irracionais, se justificam. Afinal, estamos defendendo nossa cidadela – a família, o emprego, as ilusões.
Nesse ambiente, acalmar os ânimos mais exaltados e chamar o interlocutor, real ou virtual, à razão talvez tenha deixado de ser uma opção para tornar-se um imperativo ético.
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