31 de março de 2016 | N° 18487
CARLOS GERBASE
DA IMPERFEIÇÃO
Na orelha, Flávio Moreira da Costa adverte: “Só saem inteiros – só permanecem os mesmos – aqueles leitores que não lerem o livro”. Essa frase me fez pegar Visível Escuridão na estante do sebo. Não li O Senhor das Moscas, obra mais famosa de William Golding, de modo que eu estava penetrando pela primeira vez no universo deste inglês vencedor do Prêmio Nobel que tem uma prosa estranha e, às vezes, bem poética. Há alguns meses, defendi que o leitor deve abandonar qualquer livro se, depois de 15 páginas, não for conquistado pelo texto. Pois bem, admito, não segui minha própria regra.
Até a página 50 avancei vagarosamente, lutando contra a vontade cada vez maior de me despedir daqueles personagens indigestos, daquele cenário decadente, daquelas descrições pegajosas de uma Inglaterra envergonhada e sem saída. Mas segui em frente, talvez na esperança de um grande final. Não há grande final. Há uma tentativa de reunir todos os personagens num grande evento terrorista. Contudo, a reunião não funciona, parece artificial, e, pior, algumas pontas da trama permanecem desamarradas, frouxas, balançando no ar. Golding, o Prêmio Nobel, não teve fôlego suficiente para dar conta dos seus extraordinários personagens. E o leitor, eu, voltei para a frase de Flávio Moreira da Costa na orelha e perguntei: “Estou inteiro? Ainda sou o mesmo?”.
Aí, a surpresa. Tive que responder: “Não sou”. O livro imperfeito tinha me apresentado ao velho pedófilo Mr. Pedigree, ao místico maluco Matty e à linda e monstruosa Sophy. O livro imperfeito tinha descrito como Sophy, ainda criança, descobrira sua capacidade de fazer o mal sem qualquer remorso, matando um filhote de mergulhão, e acho que essa passagem nunca mais vai sair da minha cabeça.
Visível Escuridão é uma prova de que, se ficarmos procurando essências, perfeições, obras inatacáveis, perderemos montanhas de coisas boas. A literatura é feita por seres humanos, que são imperfeitos, cheios de sobras desagradáveis de uma longa história evolucionária que, às vezes, gostaríamos de varrer para debaixo do tapete. Antes de procurar inutilmente a obra sem falha, ou o homem sem mácula, convém olhar em volta e descobrir as virtudes escondidas na imperfeição. E lutar por elas.
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