04 de março de 2016 | N° 18464
DAVID COIMBRA
Porque tem sangue nas mãos
Não é por termos o mesmo nome que gosto do Rei David. Gosto pela complexidade do personagem.
O Rei David é o maior herói dos hebreus. Poderia ser o mais forte dos homens, Sansão. Ou o mais sábio, Salomão. Mas, não. Uma cultura sutil, como a cultura judaica, só podia escolher como campeão uma figura completamente humana em seus defeitos e virtudes.
Porque assim são os homens: cheios de contradições. O Rei David derruba um gigante graças à coragem e cai por causa da luxúria. Mata 10 mil, como cantavam nas ruas as mulheres de Israel, mas poupa seu inimigo quando o tem nas mãos. Chora por seu melhor amigo, ao mesmo tempo em que o derrota na guerra. Ele peca e se arrepende, pede perdão e é atendido, unifica as 12 tribos, mas não vê concluído o grande templo de seus sonhos “porque tem sangue nas mãos”.
A vida segue esse rumo torto. A vida não é reta.
Preste atenção nas redes sociais. Muitos as criticam. Talvez por não compreenderem que as redes sociais formam o mais rico instrumento de observação do ser humano da História. Dê uma olhada. Lá estão pessoas inteligentes e estúpidas, malucas e sensatas, tímidas e expansivas, todas expostas e nuas, como num zoológico. É o mais sortido supermercado de opiniões e comportamentos em 200 mil anos de existência do Homo sapiens.
De tudo o que as redes sociais nos oferecem sobre nós mesmos, o que fica mais evidente é essa nossa multiplicidade. Como aquele rei de 3 mil anos atrás, somos legião, porque somos muitos num só corpo. Então, ora pendemos para um lado, ora para outro, em geral levados pela emoção. Levado pela emoção, o Rei David, patrono de um povo, mandou o general Urias para a morte a fim de lhe tomar a mulher, a bela Betsabá.
Os reis são homens, e os homens têm defeitos. Somos erráticos. E, na média, temos pouco entendimento do que se passa a nossa volta. Esse é o grande mérito, e a grande tragédia, da democracia representativa. Por ser o mais humano de todos os sistemas políticos, a democracia representativa é também o sistema mais irregular.
Os demais sistemas tentam ser lineares como a vida não pode ser. O ideal seria o povo ter um rei justo, sábio e bom, um pai que zelaria por seus filhos e os corrigiria, quando eles errassem. Esse é o sonho de todos os ditadores, de todos os populistas.
Só que não funciona.
O que tem funcionado é o sistema tão engenhoso quanto delicado da democracia representativa, o sistema de pesos e contrapesos de três poderes que se vigiam e governam juntos, e, junto deles, de uma imprensa livre que, como os governos, erra, mas aponta erros.
As pontas da estrela geralmente ficam de fora desse sistema. Homens muito acima da média não agradam à média. Assim, corre-se o risco de se elegerem Trumps, Dilmas, Collors, Bushs et caterva. Mas os outros poderes e a imprensa contrabalançam as disparidades e, desta forma, la nave va. O grande problema é quando um poder, quase sempre o Executivo, tenta sabotar o funcionamento do sistema a fim de se beneficiar ou fugir da cobrança por alguma prática ilegal.
É o que está ocorrendo agora, no Brasil.
As tentativas do governo de influenciar nas investigações da Lava-Jato são mais graves do que os crimes investigados. Porque corroem o sistema. Os governistas sempre arrostaram que as instituições estavam sendo respeitadas pelo governo. Agora se vê que não é bem assim. Nossos reizinhos têm ainda mais defeitos do que podíamos imaginar.
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