30 de março de 2016 | N° 18486
PEDRO GONZAGA
EM FUTURAS ESPAÇONAVES
É noite, a viagem longa. Parece impossível dormir entre os solavancos da cabine e o tremeluzir de umas quantas estrelas vagas. Talvez nos ocorra lembrar da infância, dessas mesmas estrelas lá bonitas enquanto nossos pais nos julgavam mergulhados no sono, talvez nos toque o espanto de sobrevivermos ao naufrágio de tantas possibilidades, vividas e não vividas, enquanto resta a incerteza da próxima parada.
E então um outro corpo. A sorte desse corpo que conosco segue, brevemente esquecido, mas que agora sobre nós se reclina, com sua inegável presença de carne volvida em abraço, depois a cabeça em nosso ombro e a saliva que defluirá, serena e inofensiva, porque a recompensa de nossa insônia será darmos acalanto a esta criatura e podermos estar cientes disso, até que, aos poucos, também nós encontremos o conforto da inconsciência. Trata-se de um momento humano, que, com poucas alterações, podemos imaginar praticado por nossos ancestrais desde que se colocaram em movimento em tantas terras da Terra, ao descobrirem quão sozinhos nos sentimos ao viajarmos sozinhos.
Penso que se a arte tem uma função é a de revelar momentos como esses e lhes devolver à eternidade da espécie (o que acima as palavras só foram capazes de tocar), “momentos decisivos”, como os chamou Cartier-Bresson. Porque o corpo sabe viver de suas memórias de olfato e prazer, de termodinâmica e dor. Mas para a compreensão da mente (que termina por voltar ao corpo) é preciso que experimentemos as coisas desde fora, feito um artefato, que plasme as experiências dos outros a fim de que as reconheçamos como nossas, como na fotografia do gênio francês, que agora vejo e que peço a vocês a finura de procurar:
um casal, em um trem na Romênia, ela inclinada em diagonal sobre ele, que a envolve pelo pescoço, também adormecido, os corpos revelando uma perfeita e secreta geometria que o olho do artista flagra e preserva da ação do tempo, erguendo assim um símbolo sobre o afeto dos viajantes, sobre seus gestos corriqueiros em ônibus e trens e barcos e futuras espaçonaves, convertendo-os em um credo de que a vida vale a pena mesmo que os modelos não o possam perceber.
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