RUTH
DE AQUINO
20/02/2015
22h52
As cinzas do Carnaval
Senti-me
uma estranha no ninho e pensei em todos que, como eu, viveram perdas em
momentos de celebração
Não
consegui fugir do Carnaval do Rio de Janeiro. Ele me pegou, mas eu estava com
os olhos marejados e sem fantasia. O plano era subir para uma casa nas
montanhas, levar dois romances e ficar de cara com os pássaros e o Dedo de
Deus, em Teresópolis, na serra fluminense. Mas perdi minha mãe no domingo e
passei a me sentir figurante dentro de um filme de Fellini, Julieta dos espíritos,
onde o real e o imaginário se confundem à exaustão.
Como
precisava me deslocar para a cremação e a burocracia da morte, tive de encarar
a embriaguez dos sentidos de uma cidade que se dedica freneticamente à folia. Me
senti a estranha no ninho e pensei em todos que, como eu, viveram perdas em
momentos de celebração. Era como se eu fosse um drone, vendo tudo de cima e
registrando – sem censura – a alegria e os excessos.
A
palavra “carnaval” tem origem no latim carnelevare, que significa “adeus à carne”.
Nada era mais apropriado para definir o que vivi nos últimos dias. Quando as
cinzas de alguém querido nos esperam numa urna etiquetada na Quarta-Feira à tarde,
passamos no meio dos blocos com uma sensação ambígua. Eu me sentia invisível. Ou
o oposto, como se estivesse claro que era uma intrusa. Não me incomodei com a
festança. Deslizava em outra dimensão.
Passei
por rapazes urinando nas árvores e nos muros. Vi atropelados levados em maca. Assaltados
aos gritos. Garotos forçando garotas a beijar na boca, uma atrás da outra – e
forçavam mesmo. Bêbados se jogavam diante dos carros e das motos, pulavam em
cima dos táxis. Lixo, muito lixo, a maior parte latas e garrafas, tomou conta
das ruas. Após a passagem dos blocos, o cenário era de fim do mundo, como no
filme Ensaio sobre a cegueira, adaptação do romance de José Saramago. Os foliões
pareciam sem rumo, esgotados, sem enxergar nada.
Já me
esbaldei nas festas momescas, quando o verbo era “brincar” ou “pular”. A mãe
adorava fantasiar as filhas e ir para o centro da cidade nos anos 1960. Saudei
a volta dos blocos de rua, alguns anos atrás, a ressurreição da espontaneidade
popular, o fim da hegemonia dos bailes caros nos clubes. Ainda há blocos
pequenos, familiares, em que a diversão não é sinônimo de embotamento dos
sentidos. Ninguém precisa perder a consciência para se divertir. Hospitais no
Rio precisaram tratar, na emergência, adolescentes de 15 anos em coma alcoólico.
É o adeus à carne?
Hoje,
o Carnaval dos blocos está tão em alta que até os paulistas, que antes
aproveitavam o feriado para ir ao cinema, também invadiram as ruas. Moradores
do bairro de Vila Madalena se dividiram entre os que curtiram os blocos e
aqueles que filmaram, de suas casas, cenas de sexo & drogas & violência
para mostrar às autoridades. Não há mais espaço nas grandes capitais
brasileiras para quem não gosta de Carnaval. É pior para quem mora no caminho
dos foliões. A festa está escancaradamente pagã.
Não
vi os desfiles, mas sei que a escola campeã no Rio, a Beija-Flor, foi
patrocinada por uma ditadura sanguinária, a Guiné Equatorial. As notas 10 para
a Beija-Flor – cujo dono é um bicheiro contraventor – comprovam ser impossível
politizar o Carnaval. Ou exigir veracidade dos enredos delirantes. O júri não
está nem aí para a origem do dinheiro das alegorias, julga o resultado da
escola na avenida. A campeã foi flagrada no “doping” do dinheiro sujo e terá de
suportar os danos a sua imagem. Mas o samba nunca foi santo.
Este
Carnaval me obrigou a um recolhimento salutar. Um “destaque” da semana me
confortou e ensinou: a carta de Oliver Sacks, de 81 anos, professor de
neurologia da Escola de Medicina na Universidade de Nova York, publicada no
jornal The New York Times. A carta relata como Sacks enfrenta um câncer
terminal. Um terço de seu fígado está tomado por metástases. Até o mês passado,
se sentia forte, nadava todos os dias. Hoje, está “cara a cara com a morte”.
“Cabe
a mim escolher como viver os meses que me restam. Tenho de viver da maneira
mais rica, mais profunda, mais produtiva possível”, diz Sacks. “Nos últimos
dias, tenho sido capaz de ver a minha vida a partir de uma altitude maior, como
uma espécie de paisagem.” Ele diz se sentir “imensamente vivo”. Sacks deseja
dizer adeus a quem ama, escrever mais, viajar se tiver forças. Seu sentimento é
de gratidão. Lembra a perda de amigos e descreve a morte como “um descolamento”.
Sinto
que o luto também é um descolamento, temporário. A perda física ressuscita, com
toda a exuberância das memórias, quem se foi. Como Fellini, eu vejo muita
realidade no imaginário. E isso nunca ficou tão claro para mim quanto neste
Carnaval de 2015.
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