sábado, 21 de fevereiro de 2015

RUTH DE AQUINO
20/02/2015 22h52

As cinzas do Carnaval

Senti-me uma estranha no ninho e pensei em todos que, como eu, viveram perdas em momentos de celebração

Não consegui fugir do Carnaval do Rio de Janeiro. Ele me pegou, mas eu estava com os olhos marejados e sem fantasia. O plano era subir para uma casa nas montanhas, levar dois romances e ficar de cara com os pássaros e o Dedo de Deus, em Teresópolis, na serra fluminense. Mas perdi minha mãe no domingo e passei a me sentir figurante dentro de um filme de Fellini, Julieta dos espíritos, onde o real e o imaginário se confundem à exaustão.

Como precisava me deslocar para a cremação e a burocracia da morte, tive de encarar a embriaguez dos sentidos de uma cidade que se dedica freneticamente à folia. Me senti a estranha no ninho e pensei em todos que, como eu, viveram perdas em momentos de celebração. Era como se eu fosse um drone, vendo tudo de cima e registrando – sem censura – a alegria e os excessos.

A palavra “carnaval” tem origem no latim carnelevare, que significa “adeus à carne”. Nada era mais apropriado para definir o que vivi nos últimos dias. Quando as cinzas de alguém querido nos esperam numa urna etiquetada na Quarta-Feira à tarde, passamos no meio dos blocos com uma sensação ambígua. Eu me sentia invisível. Ou o oposto, como se estivesse claro que era uma intrusa. Não me incomodei com a festança. Deslizava em outra dimensão.

Passei por rapazes urinando nas árvores e nos muros. Vi atropelados levados em maca. Assaltados aos gritos. Garotos forçando garotas a beijar na boca, uma atrás da outra – e forçavam mesmo. Bêbados se jogavam diante dos carros e das motos, pulavam em cima dos táxis. Lixo, muito lixo, a maior parte latas e garrafas, tomou conta das ruas. Após a passagem dos blocos, o cenário era de fim do mundo, como no filme Ensaio sobre a cegueira, adaptação do romance de José Saramago. Os foliões pareciam sem rumo, esgotados, sem enxergar nada.

Já me esbaldei nas festas momescas, quando o verbo era “brincar” ou “pular”. A mãe adorava fantasiar as filhas e ir para o centro da cidade nos anos 1960. Saudei a volta dos blocos de rua, alguns anos atrás, a ressurreição da espontaneidade popular, o fim da hegemonia dos bailes caros nos clubes. Ainda há blocos pequenos, familiares, em que a diversão não é sinônimo de embotamento dos sentidos. Ninguém precisa perder a consciência para se divertir. Hospitais no Rio precisaram tratar, na emergência, adolescentes de 15 anos em coma alcoólico. É o adeus à carne?

Hoje, o Carnaval dos blocos está tão em alta que até os paulistas, que antes aproveitavam o feriado para ir ao cinema, também invadiram as ruas. Moradores do bairro de Vila Madalena se dividiram entre os que curtiram os blocos e aqueles que filmaram, de suas casas, cenas de sexo & drogas & violência para mostrar às autoridades. Não há mais espaço nas grandes capitais brasileiras para quem não gosta de Carnaval. É pior para quem mora no caminho dos foliões. A festa está escancaradamente pagã.

Não vi os desfiles, mas sei que a escola campeã no Rio, a Beija-Flor, foi patrocinada por uma ditadura sanguinária, a Guiné Equatorial. As notas 10 para a Beija-Flor – cujo dono é um bicheiro contraventor – comprovam ser impossível politizar o Carnaval. Ou exigir veracidade dos enredos delirantes. O júri não está nem aí para a origem do dinheiro das alegorias, julga o resultado da escola na avenida. A campeã foi flagrada no “doping” do dinheiro sujo e terá de suportar os danos a sua imagem. Mas o samba nunca foi santo.

Este Carnaval me obrigou a um recolhimento salutar. Um “destaque” da semana me confortou e ensinou: a carta de Oliver Sacks, de 81 anos, professor de neurologia da Escola de Medicina na Universidade de Nova York, publicada no jornal The New York Times. A carta relata como Sacks enfrenta um câncer terminal. Um terço de seu fígado está tomado por metástases. Até o mês passado, se sentia forte, nadava todos os dias. Hoje, está “cara a cara com a morte”.

“Cabe a mim escolher como viver os meses que me restam. Tenho de viver da maneira mais rica, mais profunda, mais produtiva possível”, diz Sacks. “Nos últimos dias, tenho sido capaz de ver a minha vida a partir de uma altitude maior, como uma espécie de paisagem.” Ele diz se sentir “imensamente vivo”. Sacks deseja dizer adeus a quem ama, escrever mais, viajar se tiver forças. Seu sentimento é de gratidão. Lembra a perda de amigos e descreve a morte como “um descolamento”.

Sinto que o luto também é um descolamento, temporário. A perda física ressuscita, com toda a exuberância das memórias, quem se foi. Como Fellini, eu vejo muita realidade no imaginário. E isso nunca ficou tão claro para mim quanto neste Carnaval de 2015.


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