18 de fevereiro de 2015
| N° 18077
PEDRO GONZAGA
O EU IRREDUTÍVEL
Em uma das grandes cenas do
cinema ao fim do século passado, Edward Norton passeia por uma sala cheia de
móveis, descritos à maneira das revistas de decoração, a se perguntar que tipo
de sofá o definiria como pessoa. Três anos antes, Ewan McGregor corria
desesperado pelas ruas de Edimburgo com uma lista de escolhas a fazer, antes
exemplos de nossas liberdades individuais, mas que agora soavam como absurdas
obrigações: escolha uma vida, escolha um emprego, escolha uma carreira, e
depois uma série de objetos de consumo.
Baseados em Clube da Luta, de
Chuck Palahniuk, e Trainspotting, de Irvine Welsh, esses filmes ofereciam
saídas desesperadas a um individualismo caduco: um círculo de pancadaria, em
que se poderia voltar a uma vida ascética e brutal (e por isso verdadeira), ou
mergulhar em uma tal orgia de drogas que tudo mais se apagasse.
O século 20 havia assistido às
despersonificações promovidas pelos estados, reduzindo indivíduos a números,
decidindo como se devia pensar, o que se devia ler, o que se devia consumir em
longas filas de um só produto. 1984 registra este pesadelo de milhões de
mortos.
Temos agora diante de nós uma
estranha despersonificação, promovida pelos próprios indivíduos. Não à toa o
consumo (com seu efeito aparente) é o tema de nossas fábulas. Um consumo em
estado de graça, dirigido a uma massa que luta por se diferenciar sem saber que
se iguala na diferença. É o meu nome na lata de refrigerante. É a minha
existência exposta em sua singularidade. Inexistente.
Daí o grupo de protesto em que me
engajo, e que então me diferencia. Dissolvida nas redes sociais, a vida
interior se torna porosa. Conhecer uma pessoa é aderir a um combo: sabemos o
que ela pensa das drogas, do aborto, das bicicletas, do aquecimento do planeta.
Já não parece haver ninguém a preservar aquela irredutibilidade feita de
segredos e surpresas e incongruências.
Prefiro acreditar que a porrada
ou a overdose não podem nos salvar. Particularmente, acredito nas artes. Mas
talvez isso seja a última utopia de um indivíduo que se apaga.
Vejam, é meu nome na latinha.
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