24
de fevereiro de 2015 | N° 18083
FABRÍCIO
CARPINEJAR
Todo cão é fiel
Tenho
um irmão amado que mora em Faxinal do Soturno: Miguel, juiz, pai do Murilo e
casado com Milena.
É o
caçula de casa, o único que se dá bem com toda a família e o mais quieto e sábio,
talvez porque foi o último a chegar nas brigas e descobriu que eram insolúveis
e não valeria a pena perder tempo com elas.
Ele
cuida de dois cachorros. O mais novo, um salsicha, o Mandi, foi atropelado na
frente do Miguel. Escapou de um passeio vigiado na residência e se animou a
atravessar a rua de repente.
Diante
do estrondo das rodas, do rasgo do freio e do latido esganiçado, Miguel correu
para socorrê-lo. Mesmo abatido, mesmo morrendo, o cachorro mexeu o rabo ao ver
seu dono.
Destroçado,
encolhido na frieza das pedras, fez um esforço colossal de mexer o rabo para
festejar as mãos de Miguel em sua cabeça. Apesar de ferido e sangrando, alheio
a sua condição agonizante, mexeu o rabo, esta mão prodigiosa que o cachorro tem
além das patas, esta antena do coração, esta risada do corpo.
Mesmo
soltando seu último suspiro, mesmo desesperadamente doendo, o cachorro mexeu o
rabo ao ver o Miguel próximo. Mesmo no pior momento de sua vida, ele encontrou
um instante de felicidade e ternura, e acenou com o rabo, quis demonstrar para
Miguel que o amava.
Mexeu
o rabo de agradecimento. Mexeu o rabo de comoção. Mexeu o rabo, como sempre
mexeu o rabo, quando Miguel chegava do trabalho e perguntava pelo seu nome
pelos corredores. Nada mudaria seu hábito de mexer o rabo. Nada arrancaria dele
o gesto puro e repetido dia a dia.
Nem
o fim impediu sua declaração. Nem a falta de ar, o medo, a angústia de não
estar mais entre nós para sempre. Ficou mais feliz de ver Miguel do que triste
de morrer. Ele é um exemplo de como não ser tragado pela infelicidade.
O
quanto não devemos nos afundar na angústia, seremos maiores do que as
fatalidades e os reveses, pois poderemos agradecer o que somos e o que
recebemos.
Ainda
que nossa vida esteja perdida, temos uma chance de eternizá-la ao nos entregar
para a amizade do outro.
Miguel
mexeu os olhos em resposta. Sem ter certeza se estava rindo pelo carinho
surpreendente de seu cão naquele momento ou chorando pelo acidente trágico.
As lágrimas
escorriam, ao mesmo tempo, de contentamento envergonhado e de dor exagerada. Não
conseguia separar os sentimentos. Isto é a grandeza do humano, a
imprevisibilidade do amor, que também mora na alma dos cachorros.
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