quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015


11 de fevereiro de 2015 | N° 18070
J.A. PINHEIRO MACHADO

O toque supremo do talento

Vargas Llosa lamenta que seus antigos compatriotas, os incas, não tenham deixado história: quando morria o imperador, morriam com ele não só suas mulheres e concubinas, mas também seus intelectuais. Os “amautas” ou homens sábios, aqueles que registravam as histórias e feitos do soberano, eram trucidados pelo novo inca que assumia o poder e substituídos por “uma corte reluzente de novos sábios”, encarregados de recontar a história oficial, como se tudo de bom fosse obra do novo soberano: os antecessores e a memória dos antecedentes seriam tragados pelo esquecimento.

Penso nessa trágica lembrança que deixou os incas sem história, ao lembrar alguém que deixou uma história exemplar: Antonin Carême (1783-1833), filho de pais indigentes, que o abandonaram, começou como auxiliar de cozinha, num restaurante barato em Paris, em troca de cama e comida.

E dali construiu uma carreira. Carême foi o chef de cozinha favorito de Napoleão Bonaparte – antes e depois da queda –, do czar Alexandre da Rússia, dos reis ingleses, da família Rothschild e de toda a elite europeia. Inventou o suflê, o merengue, o molho branco, a massa folhada e dezenas de outros milagres de forno e fogão. Inventou até mesmo o chapéu de chef de cozinha, que usava como coroa legítima de rei: além de cozinheiro dos reis, não por acaso, ficou conhecido como o Rei dos cozinheiros.

Foi descoberto por Talleyrand, que, mais do que um patrão ou patrocinador, incentivou Carême a produzir um novo e refinado estilo de gastronomia, usando ervas e vegetais frescos, e simplificando molhos com o uso de menos ingredientes. A mesa de Talleyrand, com a arte de Carême, ficou famosa nas negociações depois da queda de Napoleão, no Congresso de Viena. Encerrado o congresso, o mapa da Europa e o gosto culinário do continente estavam transformados.

Mas, na verdade, Carême foi mais do que tudo isso, porque deixou um legado escrito. Por isso, seu mérito vai além do privilégio daqueles momentos fugidios de glórias e gloriolas diante dos figurões deslumbrados, enfastiados e extasiados com seus quitutes. Ao contrário dos incas, ele teve o talento e o empenho de escrever, contando com vivacidade e graça a História e as histórias: das receitas, dos comilões e dos incansáveis trabalhadores que davam vida, e muitas vezes a própria vida, aos fornos e fogões.

Além do olho atento ao ponto dos suflês e aos lances diplomáticos dos salões, não esqueceu os infortúnios dos criados, criticando as péssimas condições de trabalho das cozinhas: o próprio Carême acabou sendo envenenado pela fumaça do carvão com que trabalhava em seus fogões. Registrou em cadernos bem organizados não só passo a passo de suas criações culinárias, mas também observações e curiosidades sobre os salões e as cozinhas do seu tempo.


Seus livros têm reedições sucessivas até hoje. Folheando essas páginas, ao acaso, encontro uma frase: “O talento de dar o toque supremo à elaboração mais modesta, tornando-a elegante e correta, será sempre o complemento indispensável à sabedoria técnica”. Vale para o prestígio de uma cozinha, mas também para o destino de um país.

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