09
de fevereiro de 2015 | N° 18068
L.
F. VERISSIMO
Para sair da
cama
Chega
a um ponto em que você precisa ter uma razão muito forte para sair da cama de
manhã. Nénão? Um motivo sério, imperativo, irrecusável para se levantar,
escovar os dentes, tomar banho, se vestir e sair para a vida em vez de ficar na
cama o dia inteiro. Essas razões são cada vez mais escassas. E precisam ser hierarquizadas
e colocadas numa perspectiva.
Razão
nº 1 para sair da cama de manhã: mudar o mundo. Difícil. Sua capacidade para
regenerar a humanidade e salvar o planeta da autodestruição é zero. Mesmo se
acordasse com superpoderes e, depois de se certificar de que sua sensação de
onipotência não era efeito da ressaca da noite anterior, saísse para a tarefa
de acabar com a insensatez humana e as barbaridades no mundo, não saberia por
onde começar. Dizem que o próprio Super-Homem disse “Cansei”, desistiu de combater
o Mal e hoje vive de levar crianças para voar num parque de diversões. Ou então
fica na cama o dia inteiro.
Outra
razão para sair da cama de manhã: trabalhar. Uma razão nobre. Ganhar a vida
honestamente. Garantir meu sustento sem explorar ninguém e garantir o uísque
das crianças. Mas já trabalhei demais. As crianças estão encaminhadas na vida.
Não me pedem mais dinheiro. Ou me pedem e eu finjo que não ouço, o que é a
mesma coisa. O tipo de trabalho que eu faço, na tabela das atividades que
afetam a vida e o conhecimento das pessoas, está em 65º lugar, logo depois de
empalhador de marmotas. Se eu ficasse o resto da vida na cama, sem trabalhar,
ninguém iria notar a diferença.
Razão
nº 3 para sair da cama: a perspectiva de um bom café da manhã. Mas um bom café
da manhã pode ser servido na cama. O único problema seria convencer sua mulher
de que você acordou paralisado e precisa do iogurte na boca – todos os dias!
Outra
razão para sair da cama: dar o exemplo. O que diriam os outros cidadãos de um
homem ainda razoavelmente saudável e ambulante que prefere ficar na cama o dia
inteiro? O que diriam a mulher, os filhos, os vizinhos, a posteridade? Meu
legado seria o de alguém que concluiu que nada vale a pena e tudo é inútil,
começando por sair da cama. Minha postura seria a de uma estátua simbolizando
uma revolta contra a morte e o absurdo da existência, só que na horizontal. Meu
legado seria de preguiça, certo, mas de uma preguiça com fundo filosófico.
A
última e decisiva razão para sair da cama de manhã: você precisa fazer xixi.
Não tem jeito: você sai da cama.
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