quinta-feira, 10 de junho de 2010



10 de junho de 2010 | N° 16362
LETICIA WIERZCHOWSKI


Do esquecimento

Temos um pequeno jardim, e um dulcíssimo jardineiro que cuida das nossas flores. Pois o nosso jardineiro sofreu um grave acidente de motocicleta no final do ano passado.

Estava ele a ir de um jardim a outro quando um caminhão, vindo de uma ruazinha transversal, atravessou sem avisos a avenida pela qual nosso jardineiro trafegava na sua calma de jasmins. Foi um choque feio: atirado para alto com motocicleta, capacete e tudo, nosso amigo desmanchou-se no meio-fio da calçada oposta àquela que trafegava.

Teve uma grave lesão cerebral, quedou-se na UTI por um longo tempo e, somente no final do verão – após uma melhora definida como miraculosa pelos médicos que o assistiam – foi que apareceu lá em casa. Apesar de ter escapado da morte, estava malito: reaprendia a falar, caminhava com dificuldade, e esperavam-no duas cirurgias corretivas.

Pois, neste último feriado, nosso amigo chegou lá em casa novamente. Voltava, dizia ele com alegria, para as rosas e o limoeiro. Falava (não apenas com alegria) com incrível destreza para alguém que, ainda em fevereiro último, não encontrava pronome nem verbo.

Ademais, parecia outro: remoçado muitos anos, perdera suas rugas. Elogiei sua aparência: deixara para trás uns 15 anos em poucos meses, de tão moço que me aparentava. Ele riu, faceiro, e completou: perdera também 15 anos de memórias. Efetivamente, José esquecera-se da mãe, dos irmãos e dos tios que viviam longe, e a infância e juventude eram-lhe fumaça.

Disse-me que estava se reaprendendo lentamente: de foto em foto, forçava a memória em busca da mãe, do pai e da casa familiar, dos anos que, por causa do acidente, ficaram trancados num escaninho do seu cérebro. Dos filhos e da esposa, lembrava-se. Calculados uns 15 anos de desmemória, pasmou-me que sua aparência perdera, e diligentemente, esses mesmos 15 anos.

Sem dermocosméticos de quaisquer espécie, o nosso bom José está jovenzinho da silva. Sem recordações e um pouco angustiado, aprendendo seu passado como um aluno com seu livro de geografia, mas luzidio e absolutamente remoçado.

Ah, brinquei com ele, o peso das memórias que perdeste! E ficou soprando em mim um verso de um poema de Leopoldo Lugones, poema citado por Borges no prólogo do seu livro La rosa profunda: “El hombre numeroso de penas y de días”.

Sem o peso de tantos dias, diluíram-se as penas do nosso jardineiro. Talvez esse seja o segredo da eterna juventude: o eterno esquecimento.

Mas quem há de querê-lo? O doce José é que não o quer: disse-me aceitar de bom grado suas rugas de volta, desde que trouxessem-lhe o sereno conforto da suas vivências, boas ou más.

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