MARCELO
COELHO
O livro das coisas parecidas
Clássico
da literatura japonesa, escrito há mais de mil anos, é publicado agora no Brasil
pela editora 34
POR
VEZES, num livro escrito séculos atrás, encontramos uma voz tão atual, tão
presente quanto a de qualquer contemporâneo nosso. Os "Ensaios" de
Montaigne (1533-1592) são o maior exemplo disso.
Outro
caso, ainda mais notável pela distância no tempo e no espaço, é o de "O
Livro do Travesseiro". Foi escrito há mais de mil anos por Sei Shônagon,
dama da corte imperial japonesa.
Numa
série de textos curtos, Sei Shônagon anota impressões do cotidiano e fala de
suas preferências em matéria de roupas, cores, pessoas e comportamentos. Parte
importante do livro é reservada às listas, ou "catálogos de coisas
parecidas" ("mono-zukushi"). A sensibilidade da autora tem o
poder de entrar em sintonia conosco, apesar de todas as separações do tempo.
Coisas
que causam insegurança. Coisas distantes que parecem próximas. Coisas que soam
de modo diferente do habitual. Coisas que aborrecem. Coisas que a noite realça.
Para cada uma dessas estranhas categorias classificatórias, Sei Shônagon dedica
uma página, ou até menos do que isso.
Entre
as "coisas que perdem a pose", por exemplo, o livro relaciona "um
grande barco encalhado na maré baixa" e "uma esposa que, por causa de
ciúme infundado, deixa sua casa, pensando que certamente a procurariam". Depois,
continua Sei Shônagon, "não podendo mais continuar ausente, reaparece".
Numa
lista desse tipo, é como se tivéssemos a matéria-prima para um conto que não é preciso
escrever. Ao mesmo tempo, há possibilidades, ou promessas de metáfora, que
ficariam esquisitas num texto mais formal.
Muito
do livro -que foi adaptado, com excesso de maneirismos a meu ver, por Peter
Greenaway em "O Livro de Cabeceira", filme de 1996- parece ter uma
linguagem mais visual do que literária; as frases sem verbo, como ocorre com
frequência nas listas, assemelham-se a descrições de pinturas, ou sugestões de
quadros que poderiam ser feitos algum dia.
Sei
Shônagon descreve os modos de um homem que sai da casa da amada antes do
amanhecer. "Lembrando-se de um compromisso, levanta-se resoluto (...) por
estar escuro, tateia ao redor, dizendo 'onde estão, onde estão?', em busca do
leque e dos papéis dobrados deixados à cabeceira na noite anterior, que
naturalmente haviam se espalhado."
Havia
muitos encontros furtivos no Palácio Imperial, pelo que conta a autora. Os
galanteios e comunicações vinham na forma de poemas, muitas vezes alusivos a
outros poemas. A autora não se reprime: mostra sempre como foi engenhosa em
responder com outras citações eruditas os versos de uma carta que recebeu.
É por
isso, e pelas rivalidades político-amorosas da corte, que Sei Shônagon foi
estigmatizada como pretensiosa pela outra grande escritora da época, Murasaki
Shikibu, a autora de "A História de Genji". O livro de Sei Shônagon
foi escrito entre os anos de 994 e 1001, e o de Murasaki pouco tempo depois. São
os dois grandes monumentos da literatura clássica japonesa.
Muita
coisa -em especial as páginas sobre cargos na complicadíssima hierarquia da
corte- tem interesse hoje restrito a antropólogos e historiadores. Mesmo assim,
a escrita de Sei Shônagon dá vida e humanidade ao que acontece.
Nada
mais triste, diz ela, do que ver a casa de alguém tomada pelas expectativas de
uma nomeação que termina sem acontecer. Os servidores antigos, os parentes,
chegam de longe esperando a boa notícia, "comem, bebem saquê e fazem
grande alvoroço".
Mas
a madrugada avança sem sinal, continua Shônagon. "Estranhando a demora e
apurando o ouvido", os convivas percebem que a comissão encarregada das
nomeações já está indo embora. "À chegada do serviçal que estivera à espera
de notícias, em meio ao frio, ninguém tem coragem de perguntar-lhe o resultado."
O
livro ganha se lido aos poucos, ao acaso, deixando que cada pequena vinheta
exerça, aos poucos, seu encanto. A equipe de tradução (cinco pessoas, desde 2001,
preparam o texto para a editora 34), não economizou em notas, glossário e
textos complementares. Desse modo, mesmo algumas alusões obscuras recuperam sua
força estética.
Uma
dama de antigamente havia se jogado nas águas do lago Sarusawa. Shônagon cita
um poema sobre os cabelos em desalinho de uma mulher -que se parecem com as
algas daquele lago. Não se fala em suicídio: a objetividade silenciosa da
observação vale mais que páginas e páginas de sentimentos.
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