sábado, 4 de fevereiro de 2012



04 de fevereiro de 2012 | N° 16969
CLÁUDIA LAITANO


O Grito da Ipiranga

Moro no ainda simpático Mont’Serrat, um bairro, como tantos outros de Porto Alegre, que vem sendo diligentemente reflorestado por edifícios. Aos moradores mais antigos, resta conformar-se com os horizontes perdidos ou chamar o caminhão da mudança. Como a segunda opção está fora de questão por enquanto, sou dessas moradoras que encaram cada casa demolida com a resignação de quem percebe uma ruga ou um novo fio de cabelo branco.

Cada jardim de família substituído por um projeto padrão de paisagismo, cada fatia de chão que deixa de ser tocada pelo sol é uma cidade nova que se impõe à antiga. Pouco a pouco, a cidade em que a gente nasceu e cresceu vai sendo substituída por outra, não necessariamente melhor ou pior, mas de certa forma estrangeira ao tempo da nossa memória. Trata-se de um espantoso movimento migratório de quem nunca saiu do mesmo lugar: um dia você percebe que, sem querer, mudou de cidade (ou a cidade mudou de você).

Nos últimos meses, um curioso modelo de construção tem pipocado nas ruas do Mont’Serrat e das vizinhanças – um caixote em geral cinzento, com um ou dois andares de altura e grandes janelões de vidro, construído especificamente para abrigar lojas e outros empreendimentos comerciais.

O negócio chama a atenção não tanto porque é feio, mas pela reprodução fordiana da fachada: tanto faz a rua onde está instalado, o prédio vizinho ou o negócio que vai funcionar ali (loja de móveis, pet shop, funerária...), o projeto é sempre o mesmo. Seria uma assinatura artística – um estilo, digamos – se não fosse evidentemente apenas o resultado da combinação de funcionalidade com administração racional de custos. Pragmatismo arquitetônico levado às últimas consequências: a produção em série de edifícios.

E a quem deveríamos culpar pela cruel invasão dos caixotes envidraçados a não ser a nós mesmos? Os caixotes estão aí porque parecem sensatos, modernos, eficientes. Não importa que a cidade vá ficando com aquela aparência anódina das metrópoles erguidas sem planejamento: Porto Alegre desenvolveu uma evidente vocação para a indiferença estética.

Logo que começaram os debates sobre o guard-rail da ciclovia, imediatamente apareceu gente reclamando que era perda de tempo discutir a beleza do projeto em uma cidade com tantos outros problemas para resolver. Se funciona, e cabe no orçamento, está de bom tamanho.

Não poderia haver melhor metáfora da nossa persona como grupo social: por aqui, com assustadora frequência, beleza (assim como arte e cultura) é confundida com frescura. Por sorte, neste caso, a prefeitura teve o bom senso de ouvir o clamor das redes sociais e decidiu consultar arquitetos antes de sair plantando toras de eucalipto às margens do Dilúvio.

Não podemos desperdiçar essa surpreendente eclosão de bom senso. Porto Alegre deveria aproveitar esse momento histórico de rebeldia estética para instalar uma espécie de Brigada da Beleza – um batalhão de arquitetos, artistas e outros profissionais ungidos com a nobre missão de proteger nossa cidade da bárbara invasão das toras de eucalipto, dos caixotes envidraçados, da feiura eficiente. Que o guard-rail da ciclovia seja celebrado como o nosso Grito da Ipiranga.

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