domingo, 26 de fevereiro de 2012


Carlos Heitor Cony

O bufão amargo

RIO DE JANEIRO - Não é de hoje que os artistas, em geral, são os bobos da corte, ou seja, do poder. E a função dos artistas não é apenas a de distrair os poderosos, pelo contrário -a principal missão deles é criticar e, às vezes, insultar o poder.

Posso citar dois exemplos: o de Victor Hugo e o de Shakespeare. Em "O Rei se Diverte", Hugo nos dá a figura grotesca de um bufão com sua corcunda e com sua bela filha, finalmente seduzida pelo duque.

Não adiantou a vingança, "a tremenda vendetta", com que Rigoletto ameaçou o sedutor, por sinal, na melhor ária que Verdi escreveu contra o duque numa de suas óperas mais populares. Não adiantou: o poder se divertiu e quem pagou o pato foi o bufão, que ficou sem a filha e sem o emprego.

Em "Rei Lear", de Shakespeare, há outro bufão que diz a verdade o tempo todo para o velho rei que distribui seu reino e suas posses entre duas de suas filhas, sacrificando Cordélia, a mais fiel de todas. O bobo da corte chega a pensar que será chicoteado pela insolência, mas o rei limita-se a comentar: "És um bufão amargo" ("a bitter fool").

Ao que o bufão pergunta: "Qual a diferença entre um bufão amargo e um bufão doce?".

Nos dois casos, na amargura e na doçura, do ponto de vista do bufão, não há diferença. Ele próprio pede ao rei que lhe arranje um mestre que possa ensiná-lo a diferenciar a verdade amarga da doce mentira.

Na peça de Shakespeare não há seguimento para o pedido do bufão. Tal como o artista em geral, ele terá de virar-se sozinho, assumindo o castigo ou o prêmio para aprender a situar-se nos porões do poder.

A desculpa dada pela maioria, ou mesmo pela totalidade dos artistas, é que cumpriu a missão de denunciar a nudez do rei: julga-se a consciência da sociedade.

É um consolo. Mas, no fundo, será sempre um bufão amargo.

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