terça-feira, 21 de fevereiro de 2012



21 de fevereiro de 2012 | N° 16986
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Cena de domingo

Cruzo o viaduto que fica junto à Santa Casa e sempre me pareceu uma vulgar homenagem ao concreto. É quando me volto por acaso para a não menos desgraciosa Praça do Portão. Alheia à rara transparência da tarde despovoada de domingo, uma senhora borda. Usa um daqueles bastidores redondos de madeira, que eu julgava não existirem mais, é destra no manejo da agulha e das linhas.

Aquela senhora poderia estar bem ali no começo do século 19, antes que o ponto se transformasse numa trincheira guerra, com o assédio dos Farrapos. Poderia estar ali na época também já distante quando transportaram para ali a estátua do Conde de Porto Alegre.

É um senhor tristonho, esse homem. Lê-se em sua feições de mármore uma silente desaprovação dos canteiros malcuidados, dos meninos de rua que imergem num sono inquieto sobre gramas devastadas, dos arremedos de uma pífia modernidade, feito o calçadão desleixado, pretensamente tomado por bancos, invadidos por pedintes, que os convertem em camas e depósitos de lixo.

Não é improvável que o conde recorde com saudade o tempo em que o espaço esquecido era o caminho de bondes que partiam da Casa Touro, no rumo dos arrabaldes, povoados por senhores de paletó e gravata, por damas adornadas de chapéus, colares de pérola à fantasia.

Suponho mesmo que o conde, deslembrado de sua sina de monumento, não se desagradasse de lançar uma mirada à senhora que borda nesta tarde de domingo e que ela notasse seu discreto gesto com a infinita dissimulação própria das mulheres.

E que, a começar de então, já não se detivesse o conde em idas, antigas batalhas e campanhas, e compusesse os trajes, ajeitasse as armas, ostentasse um aspecto romântico e marcial. E não deserdasse a senhora do bordado de cúmplices olhares.

E transpusessem os dois, neste domingo deserto de gentes e circunstâncias, os portais sucessivos das idades, tornando a habitar, em paz e amor, entrega e posse, o solar da Rua Riachuelo, no seu máximo esplendor.

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