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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012
Carlos Heitor Cony
Cinzas e nada mais
Nesta crônica dedicada às cinzas da Quaresma, creio que consegui um recorde de citações disparatadas
Pelo menos na maior parte do Ocidente, seguimos o calendário gregoriano. Feito por um papa, é natural que tenha obedecido à tradição canônica que estabeleceu as principais festas da religião cristã, como a Quaresma e, por conseguinte, o Carnaval, dedicado inicialmente ao "adeus da carne", seguido pela imposição das cinzas, símbolo de penitência e preparação para a grande festa da Páscoa.
Tal como acontece com o Carnaval, somaram-se vários festejos pagãos em sua constituição, da mesma forma que a Páscoa cristã é uma transposição do Pessach judaico.
Neste, os judeus comemoram a libertação do povo de Israel, que sofria o longo cativeiro dos faraós egípcios. Na Páscoa cristã, é a redenção do gênero humano pela morte e ressurreição do filho de Deus na pessoa de Jesus Cristo.
Bem, não era este o meu assunto, que no fundo ainda é uma continuação do Carnaval que acabou. Atribui-se ao cristianismo a metáfora das cinzas, das coisas finitas dentro da cinza maior que é a finitude do próprio homem.
Mas os gregos já tinham suas lendas a respeito, bastando lembrar a Fênix que renasceu das próprias cinzas e, como as rosas de Malherbe, são sempre citadas pela subliteratura universal.
Minhas cinzas são outras, a começar pelo clássico "Agora É Cinza", de Alcebíades Barcelos e Antônio Marçal, gravação antológica de Mário Reis que nunca saiu da estante mais nobre de nossa música popular. "Agora é cinza, tudo acabado e nada mais." Este "nada mais" deve ter alguma coisa a ver com o "Corvo", de Edgar Allan Poe, o "nevermore" que foi traduzido por Fernando Pessoa, Machado de Assis, Mallarmé, Baudelaire e outros cobras da literatura universal.
Mas o Carnaval produz e produziu outras cinzas, inclusive aquelas que ficam nas calçadas depois de esquentarem os tamborins dos blocos e escolas de samba: "Pelas ruas não tem mais nada, nem as cinzas que esquentaram os tamborins estão nas calçadas".
E tem mais: símbolo ou sinal de perda, de coisa que não é mais (novamente o "nevermore", de Poe), há aquele samba gravado por Jorge Veiga, "Existem cinzas ainda no meu coração, que o meu primeiro amor deixou. São cinzas de um grande amor, são cinzas e nada mais que o próprio vento não desfaz".
Bem verdade que para contrabalançar citações eruditas e "fossentas", há a maravilha de um verso do Adoniran Barbosa, "Se me assoprarem eu posso acender de novo". (O verso talvez não seja assim, mas é como eu o guardei na carne e na memória, misturado com todas as cinzas a que tenho direito.)
No Convento dos Capuchinhos, ali no final da via Veneto, em Roma, está enterrado o cardeal Barberini, irmão do papa Urbano 8º. Num período difícil para os romanos, quando os bárbaros saquearam a cidade que era a cabeça do mundo, o que os bárbaros não fizeram, fizeram os Barberini:
"Quod non fecerunt Barbari, fecerunt Barberini". O cardeal está sepultado ali, ele mesmo escreveu o seu epitáfio: "Hic jacet pulvis, cinis et nihil" ("Aqui jaz o pó, a cinza e o nada").
Pó, cinza e nada -a isso ficaria reduzido o famoso cardeal que deu nome a uma das praças principais de Roma. Há que notar, no epitáfio do cardeal, que a cinza funciona como prelúdio do nada -e aí voltamos ao "Corvo", de Edgar Allan Poe: "Nevermore".
Bem, acho que chega. Nesta crônica dedicada às cinzas da Quaresma, creio que consegui um recorde de citações disparatadas, desde o papa Urbano 8º ao Jorge Veiga, passando por Baudelaire, Mallarmé, Machado de Assis, os faraós, o cardeal Barberini, as rosas de Malherbe, Mário Reis, Jesus Cristo, a grande dupla Bidê & Marçal, a Fênix que renasceu, Edgar Allan Poe, Fernando Pessoa e por último, mas não em último lugar, o Adoniran Barbosa, cujo centenário de nascimento estamos comemorando.
Não tomei minhas cinzas; tampouco cometi façanhas imundas que as fizesse merecer. Mas usei as cinzas como introdução ao grande nada.
E por falar neste grande nada, aí vai a última citação, a de T.S. Eliot em seu poema "The Waste Land", em tradução do Ivan Junqueira, esta sim, a citação final: "- Que rumor é este? - O vento sob a porta. - E que rumor é este agora? Que anda o vento a fazer lá fora? - Nada. Como sempre, nada".
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