terça-feira, 14 de fevereiro de 2012



14 de fevereiro de 2012 | N° 16979
DAVID COIMBRA


Adeus sem lágrimas

Você flana por Paris, que em Paris se flana, e, no desvão de um beco qualquer, vê uma placa atarraxada à parede de um prédio. Vai olhar e descobre que ali morou Victor Hugo, não o centromédio dos anos 70 do século 20, mas o escritor de 80 anos do século 19. Lendo a placa você sabe que foi naquele lugar que Victor Hugo escreveu:

“Os infelizes são ingratos. A ingratidão faz parte da infelicidade deles”.

Você se afasta segurando a ponta do queixo com alguma gravidade, desliza até o Saint-Germain, aboleta-se a uma mesa do Le Deux Magots e alguém lhe diz que Sartre também sentou ali, tendo o ciúme de Simone à sua frente e uma chávena de chá tílias entre eles. Você, claro, paga mais para estar sentado àquela mesa, e paga contente.

Bem. Nem toda cidade tem um Sartre, um Victor Hugo, mas toda cidade tem seus heróis, e os lugares onde esses heróis atuaram fazem parte deles. Os heróis continuam existindo ali, enquanto os lugares existirem.

Neste 2012, uma Porto Alegre sem um pingo de pranto testemunha a demolição do Estádio dos Eucaliptos, no Menino Deus. Não acho que o estádio devesse ser mantido em ruínas, mas faltou um pouco de solenidade na despedida.

Não pelo edifício, pela estrutura de tijolo e cimento, mas pelos que passaram entre aquelas paredes. Poderia citar muito do que se deu nos Eucaliptos, mas vou lembrar que por lá vicejaram dois dos maiores personagens do futebol gaúcho: Tesourinha e Foguinho.

Tesourinha foi talvez o jogador mais importante da história do Estado. Não só pela craqueza, ele que era titular da Seleção Brasileira nos anos 40, época o Rio Grande do Sul ficava tão distante das capitais que quase caía para fora do Brasil. Aliás, aquela não era qualquer Seleção. Tratava-se de um supertime, com um ataque todo de gênios ou quase gênios: Tesourinha, Zizinho, Heleno de Freitas, Jair Rosa Pinto e Ademir Queixada.

Mas eu dizia que Tesourinha foi mais do que um grande jogador. Tesourinha esteve nas pontas da quebra de preconceito racial no Grêmio E no Inter. Porque, se o Inter registrou o primeiro negro no seu time no fim dos anos 20, só o Rolo Compressor, no fim dos 30, pode ter sido considerado um time de negros.

O Rolo Compressor foi o primeiro time que, realmente, encheu os negros de orgulho com sua negritude. Pois no Rolo os negros não eram eventuais nem coadjuvantes, como foi o negro pioneiro do Inter, Dirceu, em 1927. Não.

No Rolo, os negros eram protagonistas. Nena, Tesourinha, Ávila e Adãozinho eram negros e craques, Tesourinha o melhor deles. Então, com negros, mulatos, cafuzos, índios e brancos mesclados, o Rolo tornou-se muito superior a qualquer time monocromático e passou 10 anos surrando todos nas imediações. Foi a essa superioridade mestiça que o Grêmio se abriu, e abriu-se justamente com Vanzelotti indo buscar Tesourinha, no exílio no Rio desde 1949.

O Estádio dos Eucaliptos foi palco dessa história. Foi também o palco para Foguinho, que, como jogador, pode ser considerado um símbolo dos velhos tempos do amadorismo. Foguinho nunca aceitou pagamento para jogar pelo Grêmio.

No domingo da maior partida da sua vida, o Gre-Nal Farroupilha de 22 de setembro de 1935, ele passou a manhã remando no Guaíba, foi para casa, almoçou, descansou alguns minutos, tomou o bonde e rumou para a consagração em campo, onde fez um gol no final e deu o passe para o segundo. Aquela vitória ainda é comemorada a cada setembro no Grêmio, e o será até completar 100 anos. Foi uma vitória do amadorismo de Foguinho.

Ironicamente, Foguinho foi o símbolo do profissionalismo ao se tornar treinador. Instituiu a preparação física no Estado, valorizou a marcação, exigia que seus jogadores preenchessem espaços, construiu um time que, de 13 campeonatos, ganhou 12. Foguinho foi o inventor do futebol gaúcho como o conhecemos, esse futebol 10 vezes campeão brasileiro, quatro vezes campeão da América, duas vezes campeão do mundo.

Foguinho também teve como palco o Estádio dos Eucaliptos. Ele e Tesourinha e Lupicínio e Meneghetti e Carlitos e Bodinho e Luiz Carvalho e Lara e Oreco e tantos outros ainda viviam no Estádio dos Eucaliptos. E agora o Estádio dos Eucaliptos se despediu sem lágrima e sem lenço na despedida. Despediu-se sem nenhuma reverência. E o homem só é grande quando reverencia os que foram grandes antes dele.

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