sábado, 5 de junho de 2010



Unidos pelo futebol......e pelo DNA

Os estudos genéticos iluminam a rota migratória da humanidade. Os ancestrais de Luis Fabiano e de Charles Miller, introdutor do futebol no Brasil, saíram juntos da África, agora palco
da grande festa do esporte


Fábio Altman, de Johannesburgo
Montagem com fotos de Paulo Vitale e Elsar/Shutterstock/RF
LUIS FABIANO
O craque da seleção brasileira: ele vai brilhar no continente onde nasceu o Homo sapiens, ancestral de toda a humanidade



Charles William Miller, filho de um escocês que chegou ao Brasil para ajudar a administrar a estrada de ferro Santos-Jundiaí e de uma brasileira de família inglesa, retornou de uma viagem de estudos a Southampton, na Inglaterra, no fim de 1894, com peças curiosas na mala.

Segundo relato do escritor e historiador John Mills, Miller trouxe na bagagem um livro de regras do Association Football, duas bolas de capotão, um par de chuteiras e uma bomba de ar. Em 14 de abril de 1895, no campo da Várzea do Carmo, em São Paulo, ele organizaria a primeira partida de futebol oficial do Brasil, entre as equipes The GasWorks Team e The São Paulo Railway Team.

Luis Fabiano Clemente tinha 13 anos de idade quando foi levado para treinar em seu primeiro clube, o Guarani de Campinas. Ele era um dos grandes destaques de um campinho lindamente apelidado de Buracanã. Criado pela mãe e pelo avô materno, Benedito, o Ditão, dava trabalho na escola e logo se empregou em uma oficina mecânica. O adolescente inquieto que se tornaria cen-troa-vante da seleção de Dunga na África do Sul se alegrava mesmo era no Buracanã praticando o jogo que Charles Miller, falecido em 1953, apresentara ao Brasil 100 anos antes e que foi aqui adotado não apenas como esporte, mas como religião nacional.

Milhões de brasileiros de seis gerações devem ao filho de escocês as emoções insubstituíveis proporcionadas pelo futebol. Centenas de craques saíram dos Buracanãs para a glória, a riqueza e a fama mundial. Para celebrar o encontro, na verdade, o reencontro de Luis Fabiano com Charles Miller e a África, de onde saíram os antepassados comuns deles – e de toda a humanidade –, VEJA decidiu valer-se dos mais modernos métodos da genética para traçar as rotas migratórias das correntes humanas que produziram o artilheiro e o pioneiro do futebol.

VEJA pediu a dois descendentes do pioneiro – Charles Rudge Miller, seu neto, e Angela Susan Fox Rule, sobrinha-bisneta – e a Luis Fabiano que colhessem material genético e permitissem que ele fosse estudado em laboratório. Todos concordaram, e as células (raspadas da parte interna da bochecha) foram submetidas ao teste conhecido como DNA de ancestralidade pelo laboratório Gene, de Belo Horizonte, um dos mais reputados do mundo.

Os avanços desses testes de DNA – os kits podem ser encomendados pela internet – fizeram da antropologia genética um dos métodos mais precisos e rápidos de investigação da evolução e das rotas migratórias da humanidade a partir de seu berço africano.

A Copa do Mundo da África do Sul, a primeira no continente negro, está eivada de simbolismos – a começar pelo fascínio de ser realizada em um país que, até vinte anos atrás, abrigava uma das mais violentas atrocidades do século XX, o regime racista do apartheid, derrotado pela liderança de um personagem mítico, Nelson Mandela. É fascinante também imaginar que jogadores e torcedores das 32 seleções estejam com a atenção voltada para o continente onde o Homo sapiens surgiu.

Ao esmiuçar a jornada genética de Charles Miller e Luis Fabiano – um branco, genuinamente europeu, outro mulato, descendente de escravos africanos –, esta reportagem demonstra a estupidez da "ciência das raças" que, no século XX, embasou o mal absoluto do Holocausto com seus 5 milhões de vítimas "biologicamente inferiores" e deu sustentação ao apartheid sul-africano.

Hoje, a melhor ciência informa que as raças são variações cosméticas do núcleo genético humano, incapazes sozinhas de determinar a superioridade de um indivíduo ou grupo sobre outros. Diz Sérgio Pena, médico fundador do laboratório Gene: "Não somos todos iguais, somos igualmente diferentes".

Para desenhar o mapa que ilustra esta reportagem, foram usados os resultados dos exames de ancestralidade paterna dos personagens. VEJA encomendou também exames que permitem traçar a rota das linhagens maternas de Luis Fabiano e Charles Miller. A linhagem materna é obtida pelo estudo das mutações no DNA mitocondrial que cada pessoa herda apenas da mãe. Ela é menos precisa que as marcas deixadas pelo caminho evolutivo no cromossomo Y, definidor do sexo masculino.

A ancestralidade materna mostra que Luis Fabiano teve uma tataravó da etnia banto, que é predominante na maior parte do continente africano. A linha materna de Charles Miller remonta ao que parece ser a origem comum de quase 100% do DNA mitocondrial, uma Eva mitocondrial africana que viveu entre 11 000 e 15 000 anos atrás.

Em 1972, o biólogo americano Richard Lewontin demonstrou experimentalmente que 85,4% da diversidade dos genes humanos ocorriam entre indivíduos de uma mesma população. Ou seja, quando se examina o núcleo genético, um sueco pode ser mais diferente de outro sueco do que de um indivíduo negro de origem africana. Sérgio Pena faz um curioso raciocínio: "Imagine que um cataclismo nuclear destruísse toda a população da Terra, deixando ilesa apenas a população africana.

O que nos sobraria em termos de riqueza genética? Quase tudo, porque as populações africanas, vistas muitas vezes como homogêneas, são bastante diversificadas. No exemplo catastrófico que estamos utilizando aqui, 93% da diversidade total da humanidade seria preservada. Se apenas a população zulu da África do Sul sobrevivesse, mesmo assim 85% da variabilidade da raça humana estaria presente nos genes dos indivíduos".

O italiano Luigi Cavalli-Sforza, geneticista que primeiro organizou uma árvore genealógica da espécie humana e a relacionou com a evolução das línguas, acredita que sempre fomos induzidos pela aparência a considerar que "as raças são puras (isto é, homogêneas) e muito diferentes entre si".

Escreve ele em Genes, Povos e Línguas: "É difícil encontrar outro motivo para explicar o entusiasmo dos filósofos e cientistas políticos do século XIX, como Gobineau e seus seguidores, pela preservação da pureza racial. Como só podiam estudar os traços visíveis na época, não era absurdo imaginar que raças puras existissem.

Hoje, porém, sabemos que as coisas não são bem assim e que seria praticamente impossível criar uma raça pura. Para obter com efeito uma ‘pureza’ parcial (ou seja, uma homogeneidade genética que nunca ocorre espontaneamente em populações de animais superiores), precisaríamos de, no mínimo, vinte gerações de endogamia".

Charles Miller e Luis Fabiano são diferentes na aparência, mas não no seu coração genético. O estudo comparativo do DNA de ambos mostra que os ancestrais deles começaram juntos a grande aventura migratória da humanidade há cerca de 50 000 anos. Quase 5 000 anos depois, já fora da África, o último ancestral comum de ambos deu origem a descendentes que escolheram rumos diferentes na vida. Eles começaram a carreira-solo com absolutamente a mesma bagagem genética. Como é sabido, o DNA é uma molécula capaz de se duplicar – ou seja, fazer uma cópia de si mesma.

Como toda reação bioquímica, a duplicação do DNA não produz cópias absolutamente perfeitas. O processo sofre influên-cias externas de origem química, da radiação solar e de outras fontes radioativas. Essas pequenas imperfeições tendem a ocorrer seguindo determinado padrão. Elas vão se acumulando com o tempo e tornam-se variações passadas como herança genética para os descendentes, criando uma linhagem.

O isolamento entre as populações que escolheram rotas migratórias diferentes impede que as variações acumuladas por um grupo sejam compartilhadas com o outro – o que, a longo prazo, eliminaria as maiores diferenças pela miscigenação e as duas linhagens se fundiriam em uma só.

As diferenças entre grupos isolados geograficamente tendem a se acentuar também pelas razões expostas por Charles Darwin e seus sucessores no estudo da Teoria da Evolução. As variações genéticas ocorrem ao acaso e, com o tempo, algumas se tornam predominantes em uma população porque elas se mostraram vantajosas para aquela espécie naquele determinado ambiente. Tome-se o exemplo das peles claras e escuras.

O Homo sapiens tinha uma população inteiramente formada por indivíduos de pele escura quando saiu da África. As variações genéticas que tendem a produzir pele clara certamente ocorreram indistintamente em todos os contingentes humanos.

Mas elas só se firmaram como mutações vantajosas para os grupos humanos que foram povoar as latitudes mais baixas do globo terrestre, onde o efeito protetor da melanina, o pigmento que dá cor escura à pele, é desnecessário – e até prejudicial por filtrar a fraca insolação das regiões frias, impedindo a absorção da vitamina D garantida pelos raios ultravioleta da luz solar.

"Os resultados dos exames de ancestralidade de Charles Miller e Luis Fabiano são bonitos porque confirmam, cientificamente, o que imaginávamos encontrar", diz Sérgio Pena.

É uma beleza, do ponto de vista da antropologia genética, e demonstra a utilidade de entendê-la e esperar que, um dia, ela ajude a desvendar o enigma clássico da condição humana que é a eterna desconfiança do outro, do diferente, do estrangeiro com sua aparência, cultura e religião estranhas.

O DNA nada sabe desse sentimento. No seu coração genético, a espécie humana é tão mais forte e sadia quanto mais variações apresenta. Se para a humanidade o inferno sempre foram os outros, para o DNA o inferno é o fim das diferenças.
Ipon-Boness/Sipa Press

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