sábado, 13 de outubro de 2007



13 de outubro de 2007
N° 15386 - O Prazer das Palavras | Cláudio Moreno


Os naipes do baralho

Há alguns anos um amigo meu voltou surpreso de uma curta visita ao Uruguai: diante de um cinema de Montevidéu ele tinha se dado conta de que a simpática orca do filme da Warner Bros, que ele e seus filhos por muito tempo tinham chamado de Free Willy, era na verdade apenas Willy.

Foi só ao ver o título em Espanhol - Liberad a Willy - que ele percebeu que o free não fazia parte do nome do personagem, mas era simplesmente uma construção de imperativo: "Libertem Willy". "Tive de atravessar a fronteira para enxergar o que estava bem debaixo do meu nariz", disse ele, constrangido.

Para consolá-lo, expliquei que é assim mesmo que acontece: de repente, um olhar externo ao nosso idioma - seja de um estrangeiro, seja de uma criança - vem chamar nossa atenção para um detalhe que sempre tinha passado despercebido.

Pois foi exatamente isso que me aconteceu, na semana passada, com relação aos naipes do baralho. Um inteligente brasileirinho de seis anos perguntou se eu sabia por que as cartas de copas traziam a figura de um coraçãozinho.

Embatuquei, ao me dar conta de que não tinha a menor idéia, também, por que o naipe de paus era representado por aquela florzinha, e as espadas por uma ponta de flecha. Nunca liguei muito para carta de baralho, mas como agora se tratava de palavras, resolvi me instruir.

Adolfo Coelho, no clássico Questões de Língua Portuguesa (Porto, 1874), veio socorrer minha ignorância: copas, paus, espadas e ouros referem-se às figuras que identificam os naipes do baralho espanhol, que ainda hoje pode ser encontrado nas mãos habilidosas dos jogadores de truco, das cartomantes e das ciganas.

As cartas de copas trazem a figura de taças (em Espanhol, copa - aliás, no Português também, como podemos ver no uso intercambiável, no futebol, dos vocábulos taça e copa);

as cartas de paus trazem a figura de bastões ou clavas (em Espanhol, basto; comparem com o Português bastão); as de ouros trazem a figura de moedas de ouro; finalmente, as de espadas apresentam, previsivelmente, a figura de gládios (a espada curta do soldado romano).

A escolha dessas imagens para figurar no baralho primitivo reflete apenas as divisões sociais das monarquias absolutistas; a interpretação é transparente: a taça é para o clero, o ouro é para a burguesia comercial, a espada é para os militares e o pau é para os camponeses (como sempre fui a favor da paz no campo,

friso que estou fazendo aqui a mera leitura dos símbolos, e não, como poderia pensar algum leitor apressado, atribuindo a cada segmento o que ele deveria receber na partilha social).

Depois do Renascimento, contudo, começa a difundir-se por toda a Europa o modelo francês de baralho, que hoje impera em todos os cantos do planeta, com os naipes representados da forma que conhecemos: coeur (como o nome diz, um coração); pique (uma ponta de lança); trèfle (um trevo); carreau (um quadrado, que passou depois a losango).

Quando essas cartas, muito mais práticas, entraram em Portugal, nossos antepassados, em vez de darem aos novos naipes o nome correspondente do Francês, preferiram aplicar a eles os nomes do baralho espanhol, a que já estavam habituados.

Por isso temos hoje esse descompasso entre o nome e a figura: as cartas de copas não têm mais as taças do baralho original, mas os corações do novo modelo; as de espadas não têm mais gládios, mas pontas de lança; as de paus não têm mais bastões, mas trevos; as de ouros não têm mais moedas, mas losangos.

Além disso, o desenho do baralho atual incorpora traços de outra língua ocidental, o Inglês, pois foram desenhistas ingleses que introduziram dois importantes aperfeiçoamentos no modelo primitivo.

Em primeiro lugar, conceberam um leiaute em que todas as cartas (especialmente as figuras) trazem sua imagem impressa nos dois sentidos, na posição que os franceses denominam elegantemente de tête-bêche - o que permite que toda carta na vertical esteja em posição de jogar.

Em segundo lugar, acrescentaram na margem um indicador do número ou da figura que as cartas contêm, a fim de que o jogador possa identificá-las rapidamente, mesmo que elas estejam arrumadas em forma de leque.

É por isso que os baralhos, mesmo no Brasil, trazem as cartas K, Q e J, iniciais que correspondem, respectivamente, às palavras inglesas King (o rei), Queen (a rainha, que nós chamamos de dama) e Jack (o valete, que algumas regiões do Brasil e de Portugal chamam também de conde ou cavalo).

Como o meu pequeno consulente ainda não lê, acho que vou ter de explanar tudo isso pessoalmente; duvido, no entanto, que ele aceite trocar os corações e os trevinhos, como ele gosta de dizer, pelas copas e pelos paus do baralho oficial.

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