Pobre da cidade que ainda acha que trocar o verde por um estacionamento é progresso
Com o andar da carruagem, narrativa passou a ser tudo com o que não se concorda O som das árvores do Harmonia sendo arrancadas pelas máquinas doía no coraçãoTheo Tajes / Divulgação
Pobre do Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, conhecido como Harmonia, todo pelado de suas árvores. As fotos em que o verde deu lugar às cicatrizes da terra escavada parecem saídas de algum álbum do passado. Pobre da cidade que ainda acha, em pleno 2023, que trocar o verde por um estacionamento é progresso.
Como disse alguém, o som das árvores do Harmonia sendo arrancadas pelas máquinas doía no coração. Cento e três delas já se foram, algumas com a desculpa de que estavam mortas ou definhando. A obra que está exterminando a natureza do parque condenou, no total, 432 árvores. Pelo menos a Justiça interrompeu a matança para pedir explicações, laudos, fundamentos. Antes que seja preciso trocar o nome do parque para Desarmonia.
Com a suspensão das obras, como ficam os shows no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho?Com a suspensão das obras, como ficam os shows no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho? Entidades pedem que artistas não participem do Festival Turá em razão de obras no Parque Harmonia
Nessas todas, não faltou quem dissesse que o arvorecídio era apenas uma questão de narrativa. Hoje é assim, não existem mais problemas, absurdos, descalabros, crimes: existe narrativa. Pensar que narrativa era uma palavra tão bonita, descrita — aqui, às pressas — como história, conto, série de acontecimentos que se encadeiam para compor um relato de ficção ou não. Com o andar da carruagem, narrativa passou a ser tudo com o que não se concorda. Ela diz que ele era violento. Ele alega que — apesar dos hematomas — tudo não passa de narrativa.
Ele diz que estava sendo assediado moralmente pelo chefe, que argumentou ser essa uma narrativa do funcionário para prejudicar a empresa. O político diz que as acusações contra ele são uma narrativa covarde, e que vai provar sua inocência. Ainda que cada vez se enrole mais.
O motorista do Uber, confrontado com dados pró-vacina e pró-urna eletrônica, não deixa por menos: isso daí é narrativa.
A descoberta recente da palavra Narrativa para qualquer coisa conseguiu acabar com toda a beleza dela. Ah, a inigualável narrativa do meu autor preferido. Melhor dizer agora: ah, o inigualável elóquio do meu autor preferido. A inigualável urdidura. O inigualável trololó. Cada um que ache a palavra certa para elogiar o entrecho do seu autor preferido.
Para quem está botando as árvores abaixo no parque Harmonia, a narrativa da preservação não pode impedir a construção de um polo turístico. Narrativa? É mais barato culpar os outros que fazer um projeto que privilegie a natureza. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos para ver em que vai dar isso. Para um leigo palpiteiro, parece compatível erguer um polo turístico sem transformar a área em um deserto. Talvez seja mais caro, talvez esteja aí o X da questão.
Ou o N da narrativa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário