12 DE AGOSTO DE 2023
FRANCISCO MARSHALL
HARMONIA
Harmonie é palavra e conceito grego. É como Homero refere, no canto V da Odisseia (v. 248), a jangada que Odisseu construiu para partir da ilha de Calipso, Ogígia, rumo a seu lar em Ítaca. Harmonia, as toras bem atadas e que nos permitem avançar, a ferramenta da cultura feita para a sobrevivência. A harmonia musical é composta de notas bem ajustadas que permitem à melodia navegar feliz sobre as águas da fantasia harmônica; harmonia social é a meta maior de toda a sociedade, e visa à coesão que reduz a violência e amplia a cooperação e a energia para avançarmos como se fôssemos também música, e vagar na jangada que nos salva, a cidade. Não seria lindo haver um parque dedicado à harmonia, símbolo das potências de concórdia e sobrevivência?
Além de conceito, harmonia foi também nome de duas figuras míticas gregas: uma, a ninfa Harmonia, guardiã dos bosques de uma cidade da Frígia, e que hora faz falta em uma cidade frígida, que não sabe das bodas de céu e terra, que movimentam o cosmo na copa das árvores, devastadas no parque com nome da ninfa ora agredida; outra Harmonia foi a filha de Ares e Afrodite, tema do livro As Núpcias de Cadmo e Harmonia (1988), de Roberto Calasso (1941-2021), onde se lê que "o domínio harmonioso dos elementos é a mais precária das formas". Neste romance, conta-se do banquete em que se iniciou a discórdia entre deuses e homens, e de outras violências que apontam para Éris, irmã e oponente de Harmonia. Mais que desarmonia, há intrigas locais que botam a perder o patrimônio público, tragicamente, e fazem uma cidade que já foi e pode ser bela se tornar a cada dia mais feia, maltratada por quem mais dela devia zelar.
O espanto diante do arboricídio traz à tona outros dados gravíssimos da trama sórdida armada no Parque da Harmonia contra o interesse público. O negócio que ora se implanta é resultado da concorrência 14/2020 da SMF-PMPA, que celebrou em dezembro de 2022 contrato cujos valores revelam desarranjo homérico. As áreas da Orla Moacyr Scliar (orla 1) e do Parque da Harmonia e seus anexos foram cedidas por 35 anos (!) para empresa sem histórico, fundada em 2020 para papar essa parada; na orla 1, foram gastos cerca de R$ 60 milhões em dinheiro público. A área total dos terrenos cedidos é de mais de 25,6 hectares, em valiosa paisagem junto ao centro da cidade, e foi entregue por reles R$ 201 mil (!), na assinatura do contrato (?).
A concorrência foi vencida sem concorrência e estipulava pagamento mínimo de R$ 200 mil, mais 1,5% do faturamento anual do negócio, o que faz do poder público sócio de uma empresa privada em que não atua diretamente, embora a favoreça indecorosamente. A estimativa é de uma renda de R$ 7 milhões ao município no período, o que significa aluguel mensal de R$ 16 mil. A cera que tapou os ouvidos de Ulisses diante das sereias é pouca para tamanha surdez do Tribunal de Contas - aliás, já habituado a chancelar com subserviência muitos erros de maus gestores.
Essa negociata fétida rende à cidade dissabores e um parque cafona - cacoparque de Éris, altar da desarmonia. Ah, Ítaca! Precisamos de nossa jangada Harmonia!
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