17 DE AGOSTO DE 2023
TULIO MILMAN
O fim e o começo
Esperei a tristeza se organizar para escrever. A tristeza não desaparece. Vai ganhando formas mais definidas e sólidas. Minha avó viveu 103 anos. Isso, por si só, deve ser motivo para celebrar. Mas os sentimentos são fluidos. Abraçam-se e se misturam, embora a gente tente explicá-los como se vivessem em caixinhas separadas.
Há duas semanas, a oma (vó, em alemão) Lilly adormeceu. E não acordou mais. Visitei-a poucos dias antes, já no hospital. Não foi a primeira vez em que me despedi dela. No começo do mês, quando teve uma pequena melhora um dia depois do nosso encontro, comentei com minhas filhas e com minha esposa: "Não me despeço mais". Pensávamos que ela voltaria, mais uma vez, para casa, onde viveu até a derradeira e breve internação.
Nessa última visita, tive a certeza de que a oma me reconheceu. Quando me aproximei da cama, ela tentou falar. Emitiu um som incompreensível. No fundo, foi uma coisa boa. Nossa conversa de mais de cinco décadas não teve um fim.
A oma nasceu na Alemanha. Fugiu do nazismo para o Brasil, onde conheceu o meu avô, o opa Erwin. Nunca deixaram de se sentir alemães. Depois da guerra, viajavam para a Europa uma vez por ano e lá reencontravam seus amigos e suas raízes.
O velório estava cheio. Como acontece nos enterros, também nos judaicos, coube ao líder religioso falar. O rabino Guershon Kwasniewski conhecia bem a oma. A Sibra, sinagoga na qual ele atua, foi fundada por judeus alemães, todos refugiados de guerra. Entre esses imigrantes, estavam meus avós. Enquanto o Guershon lembrava as histórias da oma, mulher determinada, forte e afetiva, me vi dando gargalhadas ao lado do caixão. Eu e muitos dos que estavam ali. Foi um dos discursos mais verdadeiros e lindos que já ouvi em uma situação dessas, quando as palavras tendem a se tornar protocolares e frias.
Alguém ao meu lado, não lembro quem, me olhou meio assustado. Tipo: "Pode dar risada em velório?". Entendi a preocupação e cochichei: "Pode rir, a oma iria gostar". Quando a terra cobriu o caixão, o sol já começava a se pôr. Saímos do cemitério para prosseguir com as nossas vidas. Ao entrar no carro, me lembrei do trecho da música A Metamorfose das Borboletas, que a Maya, minha filha de um ano e 10 meses, adora: "Na natureza, as histórias são assim: voltam pro começo, quando chegam no fim".
Bem antes de morrer, a oma repassou a algumas seletas integrantes da família os segredos da sua inigualável torta de maçã.
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