terça-feira, 29 de agosto de 2023


29/08/2023 - 16h58min
Fabrício Carpinejar

Profanação da cordialidade

Venho observando uma quebra perigosa em nossos costumes de fidalguia

Nasci no interior do estado. Sou filho de promotor de justiça e defensora pública. Meus irmãos também são da Justiça gaúcha. Carla é procuradora, Rodrigo é promotor e Miguel é juiz. Se somarmos as comarcas já experimentadas pela família, somam-se trinta cidades. Eu tive uma aula gratuita de cidadania fazendo parte das andanças de minha criação. 

Testemunhei uma postura que sempre caracterizou as comunidades que me serviram de lar por valiosos anos: a cordialidade. Predominava uma gratidão geral pelas figuras estudadas, do médico ao delegado. Poderiam até despontar oposição e divergência a partir de uma medida adotada por elas, mas nunca afronta ou violência.

Venho observando uma quebra perigosa em nossos costumes de fidalguia. Menciono dois casos recentes deste mês: a morte de Luiz Roberto Mocfa, secretário municipal de Carlos Gomes, e o atentado ao promotor Jair João Franz em Teutônia. Por um desentendimento ideológico, em 6 de agosto, Mocfa foi agredido com um soco em uma briga durante uma festa folclórica, em Lajeado Bonito. O secretário bateu a cabeça em uma pedra e não sobreviveu. 

Talvez seja descrédito da autoridade num país que não valoriza o ensino. Talvez seja sinal do crescimento de facções do crime organizado pelo interior. Já Franz, numa emboscada, tornou-se vítima de um ataque covarde com cerca de onze tiros ao chegar em sua casa de carro após uma partida de futebol, em 17 de agosto. Ele foi atingido no braço e na região do abdômen. 

Tanto Carlos Gomes quanto Teutônia são municípios com menos de 50 mil habitantes. Carlos Gomes tem 1.368 moradores e Teutônia, 32.797. Rompeu-se a harmonia em ambas as comunidades.

As cenas de barbárie destoam da deferência tradicional aos representantes do Executivo e do Ministério Público. Paira um mal-estar no ar, uma profanação dos papéis que asseguram a ordem e a paz coletiva.

Talvez seja descrédito da autoridade num país que não valoriza o ensino. Talvez seja sinal do crescimento de facções do crime organizado pelo interior. Talvez sejam resquícios da desagregação familiar. Talvez seja banalização de uma onipotência destrutiva, em que qualquer um acha que pode tudo, acima da lei. Talvez seja efeito de uma internet oculta e agressiva, permitindo o surgimento de haters que se julgam impunes e querem fazer retaliações pelos próprios teclados e mãos.

Os elos entre a população e suas esferas normativas parecem frouxos, duas pontas que não se tocam mais para o nó da coexistência. Pessoalizam-se decisões de cunho legal. Nunca existiram tantas ameaças de morte, tantas intimidações por mensagens anônimas de réus descontentes com as definições dos júris.

Não que tenhamos que incensar o Poder de modo caudatário, submisso e feudal, mas respeitar servidores no exercício de suas funções. São trabalhadores como todos nós, com as suas famílias, com os seus sonhos e frustrações. Prestaram concurso, amargaram privações e renúncias, não surgiram do nada. Alcançaram determinados postos por mérito e competência.

Nota-se uma confusão entre o que a pessoa representa e quem ela é em sua privacidade.

Promotor, juiz, defensor, secretário, policial, brigadiano, entre outros, estão revestidos de uma autoridade além de sua vida pessoal. Não estão ali a seu bel-prazer, seguem o ofício determinado pela Constituição. Permanecem na linha de frente como forças de segurança, no combate de irregularidades ou da criminalidade.

Entretanto, hoje têm a sua idoneidade questionada, correm riscos letais, sofrem pela integridade física dos filhos e cônjuges, são importunados em suas contas privadas nas redes sociais para prestar satisfações de assuntos somente pertinentes aos seus cargos públicos.

Ou seja, cumprem as suas obrigações e acabam jurados de morte. Deveriam ter o coração tranquilo para exercer o seu dever e a sua isenção. É um novo cangaço. Não podemos normalizar atentados que golpeiem a confiança em nossas instituições. Ao atingir um servidor que compõe a Justiça, atingem a todos nós. Que saibam disso.

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